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Ernest Mandel, 1923-1995: Uma avaliação crítica de seu papel na história da Quarta Internacional

Este texto foi publicado no WSWS, originalmente em inglês, em 23 de outubro de 1995.

A importância da uma análise objetiva

Ernest Mandel, dirigente de longa data do Secretariado Unificado, morreu no dia 20 de julho de 1995. Com sua morte, sai de cena um homem que cumpriu um papel de destaque na história da IV Internacional durante o pós-guerra. Deve-se reconhecer que, em qualquer história objetiva e confiável da IV Internacional, sua vida e trabalho terão de ser objeto de avaliação crítica e estudo sério.

Grande responsabilidade pesa sobre o Comitê Internacional ao fornecer seu balanço das concepções e atividades políticas de Mandel. Aqueles que possuem um mínimo conhecimento da história da IV Internacional sabem que o Comitê Internacional foi, por mais de quatro décadas, o opositor político mais consistente e irreconciliável de Ernest Mandel. O Comitê Internacional foi fundado 42 anos atrás, em meio a uma dura batalha contra a tendência política da qual Mandel era o principal dirigente.

O propósito desta resenha sobre a vida de Mandel não é somente reivindicar os argumentos e ações colocados por aqueles que fundaram o Comitê Internacional em 1953. A história, é claro, tem suas exigências. Mas o estudo do passado oferece seu maior tesouro na medida em que ele nos providencia lições das quais podemos fazer uso hoje. Portanto, nosso objetivo não é marcar pontos no placar partidário contra Ernest Mandel, nem mesmo colocar em dúvida a sinceridade de suas convicções socialistas. Nosso objetivo é, muito mais, procurar compreender, através de uma análise de sua vida, a duradoura significância política para a classe trabalhadora internacional das lutas que foram travadas dentro da IV Internacional.

Este objetivo deve ser colocado de forma mais enfática: “A duradoura significância política” não traz em si a urgência e relevância das questões políticas que preocuparam e preocupam a IV Internacional. Para os filisteus, as lutas dentro da IV Internacional não são mais do que rixas sectárias, sem importância para qualquer um que não seja diretamente envolvido nas disputas.

Não nos preocupamos minimamente com essa atitude de desprezo, que expressa a falência intelectual daqueles responsáveis pela formulação das políticas da burguesia. Só é preciso notar que as turbulências desta década chegaram completamente de surpresa para todos os dirigentes políticos dos grandes Estados capitalistas. Há menos de uma década atrás, nenhum deles anteciparia a queda dos regimes stalinistas na Europa do Leste, quanto mais a dissolução da União Soviética. Todos os grandes acontecimentos pegaram a burguesia internacional de surpresa. Ainda hoje, a burguesia não apresenta nenhuma compreensão coerente ou integrada dos processos históricos que fundamentaram as transformações políticas da última década. Ignorância e estupidez cumprem um papel que não é pequeno na formulação cotidiana da política de classe da burguesia.

Desde que foi concebida, a IV Internacional se preocupa com os problemas políticos fundamentais de todo seu período histórico. Mais uma vez, estamos certos de que os filisteus considerariam esta afirmação imodesta e presunçosa, quando não ridícula. Para começo de conversa, a própria concepção de que existem “problemas políticos fundamentais” associados à “todo seu período histórico” é totalmente estranha às mentes de orientação pragmática. A burguesia não pensa em termos de “períodos históricos”, mas em ciclos comerciais, altas e baixas de tendências.

Mas, para os marxistas, o período histórico é o da revolução socialista mundial. Suas condições objetivas estão enraizadas nas inexoráveis contradições do sistema capitalista internacional. Os “problemas políticos fundamentais” desta época são os que se relacionam com a resolução da crise de direção da classe trabalhadora e o desenvolvimento e implementação de sua estratégia socialista internacional. Deste ponto de vista, em direta oposição às alegações dos representantes intelectuais da burguesia, principalmente aqueles que se encontram nas universidades, a revolução de Outubro de 1917 não foi uma aberração, um mero desvio do curso “normal”, quer dizer, capitalista, de desenvolvimento social, mas uma virada fundamental na história mundial. Apesar do destino do estado advindo desta revolução — e é uma questão de registro histórico o fato de o movimento trotskista ter previsto há muito tempo que o stalinismo levaria a União Soviética a um desastre — o caráter essencial da época em que vivemos ainda é definido pelo conflito entre duas classes sociais internacionais irreconciliavelmente antagônicas, a burguesia e o proletariado.

Ninguém negará que muito mudou desde 1917. Mas essas mudanças não trouxeram uma alteração fundamental das bases econômicas e da estrutura de classes da sociedade. Pelo contrário, a mudança mais significante na estrutura social — o aumento massivo da população urbana e o declínio quantitativo e de significância econômica do campesinato — acentuaram ainda mais a polarização de classe da sociedade. Não há dúvidas de que continuamos vivendo em uma sociedade capitalista baseada na propriedade privada dos meios de produção e na extração de mais-valia de trabalhadores assalariados.

De todos os lados, ouvimos falar do fim do marxismo, do qual a queda da União Soviética seria supostamente o principal episódio. Normalmente, essa afirmação procede da identificação teoricamente absurda e desprovida de bases factuais do stalinismo com o marxismo. Também ouvimos falar da falência do marxismo por aqueles que sabem diferenciar um pouco o stalinismo do marxismo, mas que, em face do aparente triunfo da reação, jogaram suas mão ao céu em desespero e decidiram, sem ao menos tentar refletir sobre o problema de forma mais cuidadosa, que o socialismo não passa de uma utopia irrealizável.

Certamente, as aspirações socialistas da revolução de Outubro foram traídas, o partido bolchevique destruído e, após um processo de degeneração política e social que se arrastou por décadas, a União Soviética dissolveu-se. A classe trabalhadora sofreu sérias derrotas. O capitalismo tem demonstrado uma flexibilidade extraordinária. Mas ainda é fato que este século presenciou, após 1917, lutas revolucionárias de caráter monumental. Há não muito tempo atrás, a sobrevivência do capitalismo parecia difícil mesmo para os defensores mais ardentes da burguesia. Não acrescenta em nada, para a compreensão deste século, afirmar, seja com malícia ou resignação, que o marxismo falhou. Do contrário, é necessário estudar, em detalhes, a história do movimento internacional de trabalhadores no século XX e desvelar as verdadeiras causas dos recuos e derrotas da classe trabalhadora.

Tal estudo requer um sério exame da história da IV Internacional. É dentro deste movimento que os processos objetivos da luta de classes refletiram-se conscientemente e tornaram-se objeto de análise teórica. As polêmicas e lutas dentro da IV Internacional, provocadas pelos trágicos e importantes eventos deste século, foram os meios pelos quais episódios históricos específicos foram elevados ao nível de experiências estratégicas.

A educação da classe trabalhadora é um processo longo e difícil. O progresso da classe trabalhadora deve ser medido não só em termos do que se ganhou materialmente, mas também do que se apreendeu teoricamente. Somente a medida que a classe trabalhadora assimila as experiências estratégicas de todo o período do pós-guerra que ela será capaz de encarar os desafios de um novo período de luta revolucionária. É por este motivo que é necessário estudar o papel de Ernest Mandel na história da IV Internacional.

Por que Trotsky fundou a IV Internacional

Ernest Mandel não foi parte da geração que participou diretamente das lutas políticas que levaram à formação da IV Internacional em 1938. A atividade política de Mandel se inicia após a erupção da Segunda Guerra Mundial e o assassinato de Leon Trotski. No entanto, para que possamos entender as polêmicas que cumpririam um grande papel na vida de Mandel, é necessário rever os eventos que deram início à fundação da IV Internacional.

A história da IV Internacional não começa em seu congresso de fundação, em setembro de 1938, mas na formação da Oposição de Esquerda, sob direção de Leon Trotski, dentro do Partido Comunista da Rússia no outono de 1923. Os primeiros documentos da Oposição protestavam contra a burocratização do partido e a crescente supressão da democracia interna. A disputa se aprofundou e tomou dimensão internacional em 1924 quando Stalin, emergindo rapidamente como líder político da burocracia soviética, apresentou sua “teoria” de “socialismo em um só país”. Tal concepção descolava o desenvolvimento da União Soviética em direção ao socialismo do desenvolvimento das lutas revolucionárias da classe trabalhadora internacional. Isso trouxe trágicas conseqüências tanto para União Soviética quanto para a Internacional Comunista. A confusão política que essa teoria produziu dentro da Internacional Comunista contribuiu para uma série de derrotas devastadoras da classe trabalhadora, principalmente na China em 1927 e na Alemanha em 1933.

Dentro da Rússia Soviética, a Oposição de Esquerda buscou reformar o Partido Comunista. Enquanto tendência internacional, a Oposição de Esquerda buscou reformar a Internacional Comunista. O apogeu desta luta se deu na Alemanha, quando a Oposição de Esquerda Internacional lutou para mudar as políticas ultra-esquerdistas desastrosas que foram baixadas ao Partido Comunista Alemão pelo Comintern, controlado por Moscou, e que claramente abriam caminho para a vitória de Hitler.

Escrevendo do exílio na ilha de Prinkipo, na costa da Turquia, Trotski conclamou o Comintern e o Partido Comunista Alemão a estabelecer uma frente única com o Partido Social-Democrata, para o propósito de unificar as forças da classe trabalhadora em torno de uma luta comum contra o perigo fascista. Ele submeteu às críticas impiedosas o argumento stalinista de que não havia diferenças entre a social-democracia e o fascismo, e que a vitória de Hitler seria seguida pela vitória do Partido Comunista. Trotski denunciou esse argumento como insanidade política, advertindo que a vitória de Hitler seria a maior catástrofe que poderia recair sobre o movimento socialista europeu e alemão. Seus avisos foram ignorados. De fato, Trotski e seus seguidores foram denunciados pelo Comintern como “fascistas sociais”. Em janeiro de 1933, os nazistas chegaram ao poder sem qualquer resistência organizada da classe trabalhadora. Dentro de semanas, o Partido Comunista foi declarado ilegal e seus membros e apoiadores foram deportados ao novo campo de concentração perto do vilarejo de Dachau, criado pelos nazistas para comportar opositores ao seu regime. Não muito tempo depois disso, o Partido Social-Democrata foi declarado ilegal e os grandes sindicatos foram dissolvidos.

A Internacional Comunista recusou-se a submeter as políticas que produziram a catástrofe à menor crítica. Em reunião após esses eventos, o Comintern declarou que sua política estava correta e que ela não era de forma alguma responsável pela derrota.

Trotsky respondeu a essa vergonhosa abdicação de responsabilidade política e moral ao proclamar que a III Internacional estava falida como uma organização revolucionária. A vitória de Hitler foi para a III Internacional o que o início da Primeira Guerra fora para a II Internacional. Era necessário construir uma nova organização revolucionária, a IV Internacional.

Uma questão crítica: A natureza do stalinismo

Não houve sinal algum de subjetividade política na decisão de lançar um chamado pela fundação da Quarta Internacional. Primeiramente, Trotsky resistiu, por muitos anos, à idéia de romper com o Comintern. Enquanto o destino da classe operária alemã estava em disputa, Trotsky considerava prematuro abandonar a luta pela reforma da Internacional Comunista. Mesmo depois, imediatamente após a vitória do nazismo, ele reteve o chamado por uma nova internacional. Ainda esperou para ver se alguma seção da Terceira Internacional reclamaria uma discussão ou assumiria uma atitude crítica em relação à política do Kremlin para a Alemanha. Como ele explicou mais tarde, mesmo a crítica de uma única seção teria indicado a possibilidade de restaurar a política marxista dentro do Comintern. Mas, a ausência de críticas não deixou alternativas à Oposição de Esquerda Internacional. Em termos políticos e objetivos, o apoio do Comintern às políticas desastrosas dessa magnitude significou que este não respondia mais aos anseios da classe operária. Sua política refletia, agora, as necessidades e interesses de outra força social, a burocracia soviética.

Nos anos que se seguiram, Trotsky aprofundou suas análises a respeito do regime soviético, demonstrando que os crimes e as traições de Stalin eram a expressão necessária dos interesses materiais da burocracia que usurpou o poder político da classe trabalhadora. O papel da burocracia soviética, insistia Trotsky, era contra-revolucionário. Dentro da União Soviética, ela suprimiu sem escrúpulos todos os elementos da democracia operária. A fixação pela manutenção dos seus próprios privilégios a tornou o maior obstáculo para o desenvolvimento das forças produtivas nacionalizadas, com base numa economia genuinamente planejada. Internacionalmente, em seus acordos com as potências imperialistas, a diplomacia do Kremlin tratou dos interesses da classe operária como pequenas barganhas. Enquanto Trotsky continuou definindo a União Soviética como Estado Operário — mesmo ela tendo sofrido uma longa e profunda degeneração — dizia que sua sobrevivência a longo prazo, sem mencionar seu desenvolvimento em linhas genuinamente socialistas, dependia da derrubada da burocracia por uma revolução política.

Trotsky rejeitou todos os argumentos de que a burocracia stalinista representava uma nova classe social. Ela era, muito mais, uma casta social, que sobrepunha seus interesses através do monopólio do poder político. A burocracia exercia esse poder para desfrutar parasiticamente dos privilégios baseados nas formas de propriedade criadas pela revolução proletária. Do ponto de vista histórico, o regime burocrático não ofereceu nenhum caminho de desenvolvimento e progresso. Quanto mais ela mantivesse sua força política, alongando a degeneração da sociedade soviética, maior seria o perigo de uma restauração capitalista. Trotsky explicou que, mesmo não sendo uma nova classe, a burocracia conteria em si as tendências que produziriam, em determinado tempo, os fundamentos sociais necessários para a constituição de uma nova classe capitalista. Como escreveu em A revolução Traída:

“O fato da apropriação do poder político num país onde os mais importantes meios de produção estão concentrados nas mãos do estado cria uma nova, e até aqui desconhecida, relação entre a burocracia e as riquezas da nação. Os meios de produção pertencem ao estado. Mas o estado, por assim dizer, “pertence” à burocracia. Se essas relações inteiramente novas se solidificarem, se tornarem norma e se legalizarem, com ou sem a resistência dos trabalhadores, elas liquidarão, a longo prazo, as conquistas sociais da revolução proletária” (Leon Trotsky, The Revolution Betrayed [Detroit: Labor Publications, 1991], p. 211).

A urgência da Quarta Internacional

As análises de Trotsky a respeito do regime soviético e do caráter político da burocracia fundamentaram cientificamente a luta pela Quarta Internacional. Tendo estabelecido uma oposição irreconciliável entre os interesses materiais defendidos pela burocracia e os interesses objetivos da classe operária internacional, Trotsky insistiu que o chamado por uma nova internacional deveria ser a expressão de uma necessidade histórica, e não uma manobra tática.

Foi justamente a respeito disso que Trotsky entrou em conflito com grande número dos grupos políticos ativos na esquerda européia do meio dos anos trinta. Muitas dessas tendências diziam possuir um acordo geral com as análises de Trotsky sobre o stalinismo. Reconheciam que a burocracia soviética reinava despoticamente dentro da USSR e havia traído os interesses da classe operária internacional. No entanto, eles discordavam daquilo que diziam ser uma esquerdista e irreal proposta de ação para estabelecer uma nova internacional. Essas tendências — das quais o britânico Independent Labour Party [Partido Trabalhista Independente, ILP, na sigla em inglês], com seu Bureau de Londres, era o mais representativo — argumentavam ser prematuro proclamar a Quarta Internacional. Argumentavam que uma nova internacional não poderia ser estabelecida artificialmente; que a formação de uma nova internacional dependeria de “grandes eventos”, ou seja, uma revolução vitoriosa. Eles citavam o exemplo da Terceira Internacional que, insistiam, surgiu da vitória bolchevique de 1917.

Um profundo ceticismo e pessimismo embasavam esses argumentos. Resumidamente, a posição do ILP, dos emigrados alemães do SAP, do POUM espanhol, do grupo de Henricus Snievliet na Holanda, para citar os mais conhecidos, era a de que não existia apoio suficiente nas massas para construir uma nova internacional politicamente digna de crédito. A Terceira Internacional, assim como o remanescente da segunda, ainda possuíam a fidelidade das largas massas de trabalhadores socialistas. Seriam muito poucos, diziam eles, aqueles que militariam pela Quarta Internacional.

É necessário compreender que esses argumentos, contra a formação da Quarta Internacional, tinham muitas e necessárias implicações práticas. Em geral, as organizações que consideraram prematura a formação da Quarta Internacional adotaram, na prática, uma atitude errada e comprometedora diante dos stalinistas. Com razão, Trotsky usava o termo “centrista” para tais organizações. Elas tentavam encontrar um curso intermediário entre o marxismo, stalinismo e reformismo social-democrata. A conseqüência trágica de tal tentativa foi demonstrada pela Revolução Espanhola, onde a política adotada pelo POUM, sob a direção de Andres Nin, levou à sua própria destruição pelos stalinistas.

Nos muitos artigos escritos por Trotsky em resposta aos centristas, realçava repetidamente que os interesses históricos da classe operária somente poderiam ser atendidos por um partido que dissesse a verdade às massas, a verdade e nada mais que a verdade. Até o momento em que a classe operária estivesse sob a influência do stalinismo e/ou da social-democracia, ela seria levada a derrotas e catástrofes. Opor-se à formação da Quarta Internacional porque os stalinistas eram ainda muito fortes significava contribuir com a perpetuação da política que, segundo os próprios centristas, era o maior obstáculo para a construção de uma nova internacional. Em outras palavras, a política dos centristas deixava a classe operária num labirinto político, onde não havia saída. O SAP assumiu tal posição afirmando o seguinte: “A proclamação de uma nova internacional, apesar de ser necessária objetivamente, é impossível neste momento por conta das condições subjetivas” (extraído do Writings of Leon Trotsky 1934-35 [New York: Pathfinder Press, 1974], p. 262)

As “condições subjetivas” que os centristas lamentavam, certamente, como um “grande problema”, eram, naturalmente, a falta de compreensão da necessidade de uma nova direção revolucionária dentro da classe trabalhadora e a manutenção de ilusões nos partidos de massa existentes da classe trabalhadora.

Trotsky respondeu, severamente, a esse tipo de racionalização: “Sem uma nova internacional o proletariado, simplesmente, será esmagado. Mas as massas ainda não compreendem isso. Que mais é a tarefa dos marxistas, senão elevar o fator subjetivo ao nível do objetivo e aproximar a consciência das massas da compreensão da necessidade histórica — em termos mais simples: explicar às massas seu próprio interesse, que ainda não compreendem? O ‘problema central’ dos centristas é a enorme covardia diante das grandes e inquestionáveis tarefas. Os dirigentes do SAP não compreendem a importância da intervenção revolucionária e consciente da classe na história...

“A questão não é sobre o que as massas pensam hoje, mas com que espírito e em que direção os Srs. Dirigentes estão preparando a educação das massas” (ibid., pp. 262-63).

Trotsky também refutou o argumento de que a fundação de uma nova internacional dependeria de um “grande evento” catalítico, como a Revolução Bolchevique de 1917. Em primeiro lugar, mesmo ela tendo facilitado, certamente, o rápido crescimento da Terceira Internacional, os centristas da década de 30 não deveriam se esquecer que Lênin lançou o chamado por uma nova internacional três anos antes da Revolução de Outubro, no outono de 1914, quando da traição da Segunda Internacional diante do início da I Guerra Mundial. Naquela época, a facção de Lênin constituía uma pequena maioria, não apenas na Segunda Internacional, mas também entre o pequeno número de revolucionários internacionalistas que se opuseram à guerra.

De qualquer forma, a Quarta Internacional foi fundada com base em “grandes eventos”: as maiores derrotas na história do movimento internacional dos trabalhadores — na Itália, na China, na Alemanha, na Espanha, na Checoslováquia e na França. A desmoralização da classe operária e a vitória do fascismo em país após país, combinados com o extermínio físico sistemático dos socialistas na União Soviética, demonstraram a falência e mesmo o caráter criminoso das antigas organizações operárias, trazendo a humanidade para a beira do abismo. Uma vez que classe operária não surgiu para ser vítima inofensiva do processo histórico, ela deve ser armada com uma nova perspectiva e um novo programa.

Chegamos, então, ao elemento mais profundo da argumentação de Trotsky contra os centristas, contido na sua referência à “importância da intervenção revolucionária e consciente da classe na história” para a direção revolucionária. Para Trotsky, a maior falsificação do marxismo é a que apresenta o “processo histórico” como algo que discorre sozinho, independente do pensamento e da pratica humanos, como se os eventos políticos fossem meramente o desdobramento inevitável e predeterminado das “condições objetivas”. O que esse fatalismo passivo ignora é o papel da consciência na história, que não apenas reflete o curso objetivo do desenvolvimento histórico, mas também o interpreta e planeja os meios de influenciá-lo e mudá-lo. Como exemplo, Trotsky apontou o papel de Lênin na revolução de 1917. Sem ele, a Revolução de Outubro não teria ocorrido.

“Lênin representa um dos elementos vivos do processo histórico. Ele personificou a experiência e a perspicácia da seção mais ativa do proletariado. Seu oportuno aparecimento na arena da revolução foi fundamental para mobilizar a vanguarda e ajudá-la a organizar a classe operária e as massas camponesas. Liderança política nos momentos cruciais de transformação histórica pode ser um fator tão decisivo quanto o papel de um comandante nos momentos críticos de guerra” (Leon Trotsky, The Spanish Revolution 1931-39, [New York: Pathfinder Press, 1973], pp. 361-62).

Questões fundamentais do método marxista estão embasadas na luta contra os centristas. A dialética entre o objetivo e o subjetivo está entre os problemas filosóficos mais complexos. Não é uma redução do marxismo reconhecer que o fator objetivo contém dentro de si fatores subjetivos operando. Para a finalidade da análise teórica, podemos “abstrair” o fator objetivo (ou seja, as contradições econômicas do sistema capitalista) e considerá-lo independentemente dos outros. Tal abstração é necessária para estabelecer, ao nível mais elementar, a orientação do partido. Mas o desenvolvimento de uma análise mais profunda requer o exame de muitos e complexos “fatores subjetivos”, sem os quais nossa compreensão da situação objetiva se manterá abstrata.

A análise de uma situação objetiva pode alcançar o nível de concretude requerido pelo marxismo apenas quando abarcar o impacto potencial das forças e dos fatores subjetivos, incluindo, acima de tudo, a ação da classe operária e de sua direção revolucionária.

Ao contrário da pretensão de muitos dos seus críticos centristas, Trotsky foi profundamente realista em sua avaliação das possibilidades políticas. Melhor do que ninguém naquele momento, compreendeu a dificuldade e a complexidade dos problemas com que se confrontavam a classe operária internacional e muitos dos seus elementos políticos mais avançados. Ele sabia muito bem que esses problemas não poderiam ser superados meramente com frases e gestos vazios. Trotsky, certamente, reconheceu que o estabelecimento formal da Quarta Internacional não poderia, por si só, garantir a vitória da revolução socialista. Entretanto, ele sabia, a possibilidade de exercer influência decisiva nas condições objetivas requer a existência do partido. Além disso, a capacidade do partido em conquistar a classe trabalhadora no meio de uma revolução depende do que ele já realizou no decorrer do período precedente. A elaboração do programa do partido, o desenvolvimento de perspectivas políticas, a educação teórica e prática de seus quadros e o aumento de sua autoridade entre os grupos de trabalhadores conscientes não podem esperar pela erupção da revolução.

“De fato”, escreveu Trotsky, “durante uma revolução, ou seja, quando os eventos transcorrem rapidamente, um fraco partido pode tornar-se, rapidamente, poderoso, caso entenda claramente o curso da revolução e possua quadros leais, que não se intoxicam por frases e não se aterrorizam com a perseguição política. Mas tal partido deve estar constituído antes da revolução, uma vez que o processo de educar os quadros requer tempo, e a revolução não dispõe de tempo” (ibid., p. 363).

Deste modo, Trotsky considerou distração perigosa toda discussão sobre as perspectivas da revolução socialista que não assumissem o ponto de vista da elaboração das tarefas teóricas e políticas independentes do partido marxista, tomado enquanto o fator consciente decisivo na luta de classes. Sempre e sempre, Trotsky retornava a esse ponto: as condições objetivas, mesmo as mais favoráveis, por si, oferecem à classe trabalhadora nada mais do que a possibilidade de conquistar o poder político. Não há dialética cósmica ou histórica que predetermine a vitória ou a derrota da classe trabalhadora. Dezessete anos após a Revolução de Outubro, Trotsky lembrava seus críticos centristas:

“No ano de 1917, a Rússia passava por sua maior crise social. Alguém certamente poderia dizer, entretanto, com base em muitas lições da história, que, se não houvesse o Partido Bolchevique, a imensurável energia revolucionária das massas teria se esgotado em infrutíferas explosões esporádicas e os maiores levantes teriam terminado nas ditaduras mais contra-revolucionárias. A luta de classes é o motor principal da história. Ela exige um programa correto, um partido firme, uma direção corajosa e digna de confiança — não heróis de salão, com suas frases parlamentares, mas revolucionários, prontos para ir até o fim. Essa é a maior lição da Revolução de Outubro” (Writings of Leon Trotsky 1935-36, [New York: Pathfinder Press, 1977], p. 166).

Segunda Guerra mundial e o assassinato de Trotsky

Leon Trotsky foi assassinado em Coyoacan, nos arredores da Cidade do México, no dia 20 de agosto de 1940 por Ramon Mercader, um agente da GPU stalinista. Como Trotsky havia previsto, Stalin optou por assassiná-lo num momento em que as atenções internacionais estariam voltadas a outra questão. Nos meses que precederam o assassinato, os exércitos de Hitler haviam varrido a Europa ocidental com sucesso. A França rendera-se. A batalha da Grã-Bretanha havia acabado de começar.

Durante os anos finais de sua vida, Trotsky produziu ensaios políticos tão geniais quanto qualquer um dos que escrevera anteriormente. Sua atenção estava voltada para as grandes questões de perspectiva histórica que haviam sido postas pela erupção da segunda guerra mundial. Ele entendia a guerra como produto tanto das contradições insolúveis do capitalismo quanto da crise da direção do proletariado. Somente o desenvolvimento bem sucedido da revolução socialista européia poderia prevenir a guerra. Mas as burocracias stalinistas e social-democratas haviam desmoralizado e conduzido a classe trabalhadora à derrota. A vitória de Franco na Espanha, pela qual o regime stalinista foi o principal culpado, havia acabado com o último obstáculo possível à erupção da guerra. A humanidade estava prestes a pagar um preço assombroso pela derrota da revolução socialista.

Uma geração antes, a Primeira Guerra Mundial colocou em movimento a cadeia de eventos que levou à Revolução Bolchevique. Trotsky estava convencido de que a Segunda Guerra Mundial também produziria condições para a revolução. Porém, ele advertiu seus seguidores de que o resultado dependeria do desenvolvimento da direção política da classe trabalhadora. A deflagração da guerra expusera a evidente contradição entre o estágio bastante avançado da crise objetiva do capitalismo e a falta de preparação dos fatores subjetivos da consciência de classe e direção política. Essa contradição não seria superada facilmente. Haveria, muito provavelmente, mais derrotas pela frente. Mas os quadros da Quarta Internacional, aconselhou Trotsky, deveriam preparar-se para uma luta que poderia se estender por décadas. Independente do resultado imediato deste ou daquele episódio da luta de classes, a solução do “problema histórico” dependeria do estabelecimento da autoridade política do partido revolucionário na classe trabalhadora.

“A questão do ritmo e dos intervalos de tempo é de enorme importância, mas isso não altera nem a perspectiva histórica nem a direção de nossa política. A conclusão é simples: é necessário levar adiante a tarefa de educar e organizar a vanguarda proletária com energia decuplicada. É precisamente aqui que se encontra a tarefa da Quarta Internacional.” (Writings of Leon Trotsky 1939-40 [New York: Pathfinder, 1973], p. 218).

As primeiras atividades políticas de Ernest Mandel

Ernest Mandel nasceu na Alemanha em 1923, mas mudou-se ainda criança para a Antuérpia, na Bélgica. Ele não fez parte da geração que se juntou ao movimento trotskista nos anos 30 e que foi ativa nas lutas que levaram à formação da Quarta Internacional. Ele era 12 anos mais jovem do que Michel Pablo, com quem Mandel viria a associar-se, e quase uma década mais jovem do que Gerry Healy. Porém, não há dúvidas de que ele demonstrou sua coragem pessoal enquanto ainda era bem jovem.

Mandel juntou-se ao movimento trotskista durante os primeiros anos da Guerra e começou a atuar no movimento anti-nazista de resistência. O movimento trotskista europeu sofreu fortemente a perseguição combinada dos fascistas e stalinistas. Muitos de seus membros dirigentes, incluindo o brilhante Abram Leon, que aparentemente cumpriu um papel importante na formação política de Mandel, perderam suas vidas. Mandel quase perdeu a sua, mas por sorte sobreviveu à deportação a um campo de execução e retornou à Bélgica após a queda do regime nazista.

A Quarta Internacional enfrentava problemas políticos sérios ao final da guerra. Como Trotsky havia previsto, ocorreu uma radicalização política tremenda de amplas camadas da classe trabalhadora européia. No entanto, apesar das traições de antes da guerra, dentre as quais incluía-se o pacto de não-agressão entre Stalin e Hitler, o regime soviético e os partidos stalinistas saíram da guerra com mais autoridade política, graças ao papel exercido pelo Exército Vermelho na derrota do Terceiro Reich e à participação dos partidos comunistas nos movimentos anti-nazistas de resistência. Os stalinistas usaram a influência que adquiriram para recuperar a autoridade política da desesperada e enfraquecida burguesia da Europa ocidental. Na França e Itália os stalinistas desarmaram os movimentos de resistência que estavam sob seu controle e entraram em governos de coalizão com a burguesia.

A Quarta Internacional não tinha forças suficientes para superar a influência dos partidos stalinistas, cujo número de membros cresceu aos milhares ao final da Segunda Guerra. Diante destas dificuldades, o movimento trotskista buscou analisar as questões complexas surgidas com o fim da guerra e defender uma perspectiva revolucionária. Ernest Mandel tornou-se uma figura proeminente dentro da Quarta Internacional nesta época. Sob o nome de “Germain”, que serviu por vários anos como sua alcunha política, ele contribuiu para o jornal político da Quarta Internacional com inúmeros artigos, nos quais analisava o papel contra-revolucionário desempenhado pelos stalinistas no restabelecimento da dominação burguesa na Europa.

“O primeiro objetivo imediato da burguesia era o ‘retorno à normalidade’”, escreveu Mandel em abril de 1946. “Para atingi-lo era necessário que as massas deixassem as ruas e retornassem a suas casas. A proclamação de um estado de sítio por si só não era suficiente. Era também necessário que as direções do movimento, principalmente as direções stalinistas, convocassem as massas cada vez mais a restabelecer a ‘ordem’. As evidências disto foram postas: sem as direções da FTP na França, com a Front de L’Independence na Bélgica, a Force de L’Interieur na Holanda, sem os líderes do Comite de Liberation Nationale na Itália, a burguesia não teria conseguido atingir uma estabilidade temporária e teria que ter enfrentado guerras civis em todos os lugares” (Fourth International, setembro de 1946, p. 271).

A volta da estabilização do capitalismo tornada possível pelos stalinistas levou ao surgimento de uma tendência na Quarta Internacional, liderada por Felix Morrow e apoiada por Max Schachtman, que argumentou ser inútil avançar com um programa socialista revolucionário na Europa. A Quarta Internacional, insistia Morrow, deveria apresentar-se como a maior campeã da democracia burguesa. Somente sobre essas bases seria possível ser ouvido pelas massas de trabalhadores europeus, que estavam sob influência de ilusões democráticas. Mandel opôs-se veementemente a esta tentativa de liquidar o programa socialista da Quarta Internacional. Como escreveu em julho de 1946:

“Um leninista, ao abordar a questão do uso de palavras de ordem democráticas, procede a partir da estimativa geral que faz da época em que vivemos, assim como do programa da revolução socialista que parte desta. A questão tática envolve somente o caminho em que as massas devem ser conduzidas para aceitar este programa... e não como ocupá-las de outra forma enquanto não ‘compreendem’ este programa! Para o leninista, reivindicações democráticas são vistas apenas como instrumentos para a mobilização das massas trabalhadoras” (Fourth International, novembro de 1946, p. 346).

Respondendo ao argumento de que a classe trabalhadora européia não poderia compreender o programa socialista (o que era, por sinal, uma proposição um tanto duvidosa em 1946), Mandel argumentava que era falso “permitir a si mesmo ser hipnotizado por um estado mental transitório das massas (como fazem os oportunistas), e basear sua linha política não na tarefa de ajudar as massas a elevarem-se à altura de suas tarefas históricas, mas na necessidade de rebaixar o programa ao nível das camadas mais atrasadas das massas” (ibid., p. 347).

O papel do stalinismo

Mas, de longe, o problema mais difícil enfrentado pela Quarta Internacional após a Segunda Guerra foram as implicações programáticas das transformações sociais, econômicas e políticas produzidas pela ocupação soviética do leste europeu. A Quarta Internacional havia insistido, desde sua criação, no papel contra-revolucionário do stalinismo. Porém, a vitória dos resistentes na Iugoslávia sob a liderança do Partido Comunista e a ocupação do leste europeu pelo exército soviético foram seguidas pela ampla nacionalização das indústrias nesses países. A nacionalização de grandes setores dessas economias significou que os países ocupados pelo Exército Soviético tinham sido convertidos em estados operários? E se tal transformação fora realizada sob a égide do exército soviético e dos Partidos Comunistas locais, isso não colocava em dúvida a inequívoca caracterização do stalinismo como contra-revolucionário?

Havia outras questões cruciais, colocadas pelos acontecimentos no leste europeu. Se o caráter de classe do estado podia ser transformado em um país meramente através da intervenção do exército soviético, complementada por políticas econômicas implementadas burocraticamente de cima para baixo por oficiais stalinistas, sem qualquer movimento de massas verdadeiramente independente da classe trabalhadora dirigida por seu próprio partido político, isso não colocaria em dúvida a necessidade histórica da Quarta Internacional? Se um Estado Operário podia ser estabelecido sem uma revolução operária de massas ou sem órgãos identificáveis de poder político, como emergiram os sovietes na Rússia em 1917, e através dos quais o proletariado exerceu seu domínio de classe, isso não desafiaria a concepção marxista mais básica da revolução socialista como a expressão política mais avançada da atividade de emancipação da classe trabalhadora? Seria a atividade revolucionária independente e com consciência de classe dos trabalhadores realmente necessária para atingir o socialismo? De quais outras maneiras, e através da direção e atividades de qual outra força social poderia ser realizado o socialismo?

Certamente, essas questões não foram todas levantadas de uma só vez. As implicações programáticas de longo alcance dos eventos no leste europeu iriam emergir no curso de diversos anos, e a maneira como a Quarta Internacional respondeu a elas viria a ter um efeito profundo em seu desenvolvimento.

As transformações do pós-guerra no leste europeu haviam sido antecipadas por um memorável artigo que Trotsky escrevera em 1939, pouco depois da explosão da Segunda Guerra Mundial. A invasão soviética da Polônia, levada a cabo de acordo com os protocolos secretos do pacto Stalin-Hitler de agosto de 1939, foram seguidos pela expropriação das propriedades burguesas na parte oriental do país, tomado pelo Kremlin. Se consideradas isoladamente, essas expropriações tinham certo caráter progressista. No entanto, estas ações teriam que ser examinadas dentro de uma perspectiva mais ampla, internacional.

“Para conseguir a possibilidade de ocupar a Polônia através de uma aliança militar com Hitler”, escreveu Trotsky, “o Kremlin já traiu e continua a trair as massas na URSS e no restante do mundo, e trouxe assim a completa desorganização das fileiras de sua própria Internacional Comunista. O critério político primordial para nós não é a transformação das relações de propriedade nesta ou naquela outra região, por mais importantes que estes eventos possam ser em si mesmos, e sim a mudança na consciência e organização do proletariado mundial, a elevação de sua capacidade de defender antigas conquistas e conquistar novas. Apenas deste, e somente deste ponto decisivo, as políticas de Moscou, tomadas como um todo, retêm completamente seu caráter reacionário e permanecem sendo o principal obstáculo no caminho à revolução socialista” In Defense of Marxism [London: New Park Publications, 1971], p. 23).

Nos resultados imediatos após a guerra, a direção da Quarta Internacional opôs-se firmemente as insinuações de que as medidas econômicas tomadas pelos stalinistas na Europa central exigiam uma revisão do programa trotskista. Longe de aumentarem a influência socialista, advertiu o jornal Fourth International em novembro de 1946, os métodos stalinistas haviam dividido as massas do leste europeu.

“As inexprimíveis traições, os levantes de massas por eles sufocados, seu terror contra-revolucionário, seus saques e depredações, tudo isso desacredita aos olhos dos trabalhadores a própria palavra, a própria idéia do comunismo. Quão pesadas são as nacionalizações no leste europeu na balança diante dos crimes de Stalin contra a classe trabalhadora? As aventuras contra-revolucionárias stalinistas no leste europeu, ao invés de colocar a aura de uma missão progressista na história, tornaram ainda mais urgente a necessidade de massacrar este diabo sangrento, e preveni-lo de causar mais estrago do que já causou à classe trabalhadora e à sua luta por emancipação.

“A cegueira do stalinismo, seu caráter impronunciavelmente reacionário e sua falência histórica são expostos claramente, sobretudo no leste europeu. Em nome do roubo miserável, em nome da pequena mudança de reparações — completamente sem significância em relação à salvação das necessidades econômicas da URSS — o Kremlin levantou ao seu redor um muro de ódio ao redor da Europa oriental e do mundo. Em nome do controle militar sobre os miseráveis e falidos Bálcãs, o Kremlin deu suporte aos imperialistas anglo-americanos para esmagar a revolução e apoiarem o capitalismo decadente.” (Fourth International, novembro de 1946, p. 345).

Enquanto são lidas estas linhas, escritas a quase meio-século, não é possível não ficar surpreso com sua extraordinária visão do futuro. Essas linhas são um testamento dos poderes de análise do marxismo em geral e da capacidade de antecipação da perspectiva trotskista em particular. Mesmo quando o stalinismo se encontrava no auge de seu poder, o movimento trotskista previu o desastre a que as políticas do Kremlin conduziriam.

Mandel, apesar de ainda ter ao redor de 20 anos, contribuiu fortemente na luta contra tendências que atribuíram ao stalinismo qualquer tipo de missão histórica. Ele advertiu contra pular prematuramente à conclusão de que a nacionalização das propriedades significava que Estados Operários haviam sido estabelecidos no leste europeu. A “metodologia marxista em seu todo”, escreveu Mandel, era inconciliável com a teoria “absurda” de que “um Estado Operário está sendo instalado em um país onde ainda não houve uma revolução proletária”. (Fourth International, fevereiro de 1947, p. 48).

Era errado, insistiu ele, basear a definição do caráter de classe de um dado Estado simplesmente no fato das nacionalizações. Ao examinar em detalhes os eventos que haviam ocorrido na Polônia, Mandel explicou:

“A combinação das condições históricas era tal, que a burocracia stalinista, ao adentrar o país, não achava mais quaisquer proprietários para os inúmeros empreendimentos industriais e comerciais. A burguesia polonesa, que sempre fora tão pobre de capital, era incapaz, mesmo no passado, de reunir capital suficiente sobre a base de acumulação privada para poder criar uma indústria de larga-escala. O problema dos territórios anexados, com suas inúmeras minas e fábricas, não conseguiria, de qualquer forma, encontrar saída por fora da administração do Estado — mesmo sem a ocupação soviética ou um levante revolucionário, estas indústrias teriam sido nacionalizadas” (ibid., p. 49).

Opondo-se a todas as sugestões de que as conseqüências da guerra haviam demonstrado, de certa forma, o caráter progressista da burocracia do kremlin e colocavam em dúvida a perspectiva do movimento trotskista, os documentos programáticos de Mandel e de outros eram impregnados de confiança na capacidade da Quarta Internacional de conquistar a direção da classe trabalhadora. Como declarava o manifesto do Segundo Congresso da Quarta Internacional:

“Para arrancarmos do stalinismo a direção da classe trabalhadora, é necessário começar de onde a Social-Democracia e o Partido Comunista partiram. É necessário educar uma nova geração de quadros revolucionários trabalhadores, que, através de numerosas experiências sucessivas de luta, irão enraizar-se com sucesso na classe trabalhadora e ganhar seu respeito e confiança. É necessário construir um partido verdadeiro, através do qual poderão chegar a todos os trabalhadores, ganhando respeito e confiança. É necessário construir um verdadeiro partido que, através de atividades mais amplas, irá aparecer eventualmente em todos os movimentos de massas como verdadeiras alternativas a essas direções falidas” (ibid., p. 49).

Mudanças na Quarta Internacional

Os anos que passaram-se após essas publicações testemunharam uma profunda mudança nas posições não apenas de Ernest Mandel, como também de uma grande seção da Quarta Internacional. As mesmas concepções que Mandel condenou em 1946-47 foram adotadas por ele nos anos seguintes. A mudança em sua posição política refletia a crise que tomara a Quarta Internacional ao final da década de 40.

A crise política dentro da Quarta Internacional não pode ser compreendida isoladamente da totalidade do desenvolvimento da situação mundial. Primeiramente, ficou evidente, em 1948, que o risco de uma revolução socialista na Europa Ocidental — que surgiu ao final da guerra — havia desaparecido. Sob a égide do imperialismo americano e seu Plano Marshall, o capitalismo manteve certo equilíbrio viável. O movimento da classe trabalhadora retrocedeu e sua iniciativa política, com a ajuda dos stalinistas e social-democratas, passou novamente para as mãos da burguesia.

Apesar da traição à classe trabalhadora, o prestígio e influência da burocracia soviética aumentaram consideravelmente, como resultado de sua vitória sobre os nazistas alemães. Na França e Itália — onde foram a força preponderante na resistência antifascista — após a invasão dos nazistas sobre a URSS ter rendido o (vazio e nulo) pacto de não-agressão, os stalinistas foram também a força política dominante na classe trabalhadora. No Leste Europeu, a estatização da indústria foi acelerada em resposta ao Plano Marshall. Na Iugoslávia, o regime dirigido por Tito já havia realizado a estatização da indústria. Ao mesmo tempo, a influência dos partidos stalinistas crescia rapidamente, principalmente na China e na Indochina francesa.

De uma forma peculiar, em 1948, a explosão do conflito entre Tito e o Kremlin contribuiu para a crise política dentro da Quarta Internacional. Inicialmente — e corretamente — a Quarta Internacional defendeu criticamente Tito contra as denúncias e provocações do Kremlin. Ela avisou, contudo, que não seria possível lutar contra o stalinismo com base em um programa nacionalista, ou seja, contrapondo aos ditados brutais do Kremlin uma versão iugoslava do “socialismo em um só país”. Nem mesmo em seu desenvolvimento seria possível, para os comunistas iugoslavos, equilibrar-se entre a União Soviética e os imperialistas com base em um programa de interesses nacionais.

A intervenção da Quarta Internacional nesse momento crítico, o primeiro grande racha nas fileiras dos stalinistas, era correta e principista. A crise forneceu aos trotskistas a oportunidade única de explicar para ao mundo todo as questões que sustentavam sua grandiosa luta travada desde 1923. Mais do que isso, a Quarta Internacional poderia fazer algo que Tito era incapaz: explicar que o ataque soviético à Iugoslávia provém do caráter contra-revolucionário da burocracia do Kremlin e do stalinismo.

Entretanto, os acontecimentos na Iugoslávia fortaleceram tendências oportunistas que começavam a tomar forma dentro da Quarta Internacional. Inicialmente, a nacionalização das indústrias no Leste Europeu suscitou a discussão sobre a habilidade dos stalinistas em formar novos Estados Operários. Agora, o desafio do Kremlin pelo Partido Comunista Iugoslavo era tomado como uma indicação de que os partidos Comunistas poderiam passar por processos de auto-reforma. Foi nesse contexto que se desenvolveu uma discussão dentro da Quarta Internacional sobre a natureza dos estados recentemente incorporados pelos stalinistas. Após longo debate, chegou-se a conclusão de que os regimes do Leste Europeu poderiam ser classificados como Estados Operários Deformados.

A natureza dos estados do Leste Europeu

Qual o sentido desse novo termo? Por muitos anos a União Soviética foi classificada pela Quarta Internacional como Estado Operário Degenerado. Criada sobre uma vitoriosa revolução proletária, a estrutura política e os órgãos do estado soviético haviam passado por forte degeneração. Os elementos de democracia operária foram suprimidos pela burocratização do estado e do partido dominante. Na medida em que defendeu as novas formas de propriedade nacionalizadas criadas pela Revolução de Outubro, a União Soviética permaneceu um Estado Operário. Entretanto, a usurpação do poder político pela burocracia, o ressurgimento da desigualdade social, a contradição entre os interesses materiais da burocracia dominante e aquilo que era requerido para o desenvolvimento de uma economia planejada cientificamente — tudo isso exprimia o processo de degeneração que levou ao colapso da União Soviética e à restauração do capitalismo.

A tarefa política pressuposta nessa definição de Estado soviético era a de lutar para parar e reverter essa degeneração, isto é, propagar e organizar a derrota da burocracia do Kremlin através de uma revolução política que desmantelasse as estruturas da repressão totalitária, restaurasse a democracia operária e, nessas bases, preservasse e desenvolvesse em sentido genuinamente socialista e internacionalista as formas de propriedade nacionalizadas que surgiram após 1917.

A definição de Estado Operário Deformado contém uma ambigüidade inerente. Anteriormente, o conceito de Estado Operário havia sido associado exclusivamente a um Estado que, independentemente de sua evolução, fora o produto de uma revolução socialista. Nenhum dos Estados do Leste Europeu foram criados pela conquista do poder político pela classe trabalhadora. Mesmo na Iugoslávia, o movimento partidário foi baseado na pequena-burguesia rural.

James P. Cannon e outros dirigentes do Socialist Workers Party [Partido Socialista dos Trabalhadores — SWP, na sigla em inglês] preocupavam-se em encontrar um conceito apropriado para definir os regimes estabelecidos pelos stalinistas no Leste Europeu e nos Bálcãs. Este conceito, ao mesmo tempo, não poderia ser o ponto de partida para uma revisão da teoria marxista clássica e das perspectivas históricas da Quarta Internacional.

Ficou determinado, temporariamente, que esses novos regimes seriam definidos como Estados Operários Deformados. Para Cannon e outros que insistiam que os acontecimentos no Leste Europeu não contradiziam a análise trotskista do papel contra-revolucionário do stalinismo, a nova definição deferia ser utilizada de uma forma limitada e precisa. Ela reconhecia que as nacionalizações realizadas pelo Estado eram, quando vistas em termos meramente econômicos, de um caráter progressivo e deveriam ser defendidas contra a restauração da propriedade privada dos meios de produção. Além disso, a definição expressava o comprometimento da Quarta Internacional em defender esses Estados contra ataques militares imperialistas. Essa posição se opunha diretamente àquilo que Shachtman, com seu Workers Party [Partido dos Trabalhadores], defendia [1]. Reivindicava uma “revolução política nacional-democrática” sob o slogan “Vida longa à Polônia livre!”.

Portanto, o uso da palavra “deformado” buscava exprimir a diferença básica e essencial entre a União Soviética e os regimes do Leste Europeu. Aquela era produto de uma revolução proletária; estes não. Deformados desde seu nascimento para a estrangulação burocrática da classe operária do Leste Europeu, esses estados eram de viabilidade histórica duvidosa. Como procurei demonstrar em The Heritage We Defende [A Herança Que Nós Defendemos]:

“Assim, longe de associar tais regimes com novas perspectives históricas, viáveis, a designação ‘deformado’ sublinhava a falência histórica do stalinismo e apontava imperativamente para a necessidade de construção de uma verdadeira direção marxista, para a mobilização da classe trabalhadora contra a burocracia por meio de uma revolução política, a criação de verdadeiros organismos de poder operário e a destruição dos incontáveis resquícios capitalistas dentro das estruturas estatais e econômicas” (The Heritage We Defend [Detroit: Labor Publications, 1988], p. 179).

A discussão a respeito da correta definição dos estados do Leste Europeu era mais do que uma disputa por palavras. Em política, como certa vez observou Trotsky, por trás de cada definição terminológica subsiste um prognóstico histórico. Aqueles que mais lutaram para que a Quarta Internacional reconhecesse, o mais rápido possível, que Estados Operários de um tipo ou de outro haviam se estabelecido do Leste Europeu, desenvolviam perspectivas e orientações oportunistas para a Quarta Internacional. A nova definição dos estados do Leste Europeu foi o ponto de partida para a revisão das perspectivas do movimento trotskista.

A perspectiva Pablista

Os esboços dessa nova perspectiva apareceram num documento escrito por Michel Pablo, o Secretário Internacional da Quarta Internacional, em setembro de 1949. “O socialismo”, escreveu ele, “enquanto movimento político e ideológico do proletariado, enquanto um sistema social, é por sua natureza internacional e indivisível. Essa idéia está na fundação do nosso movimento e é a única sobre a qual poderá se desenvolver a consciência do movimento de massa que assegurará o desenvolvimento socialista da humanidade.

“Mas, tendo isso em mente, não obstante permanece verdade que no período histórico de transição do capitalismo para o socialismo como um todo, período que pode se estender por séculos, encontraremos desenvolvimentos revolucionários muito mais complicados e tortuosos do que previram nossos mestres — assim como Estados Operários que não são clássicos, mas bastante deformados” (SWP International Information Bulletin [Boletim Informativo Internacional do SWP], Dezembro de 1949, p. 3).

Esse documento marcou o início de uma nova perspectiva histórica de transição do capitalismo para o socialismo, que atribuía à burocracia stalinista um papel histórico independente e progressivo. Ainda que de forma diferente, essa concepção havia se desenvolvido dentro da Quarta Internacional tendo por base as posições de Shachtman e Burnham em 1939-40. Eles também atribuíram à burocracia uma missão histórica mundial, como protagonista de novas sociedades burocrático-coletivistas. Agora, Pablo sugeria que os Estados Operários deformados estabelecidos no Leste Europeu representavam a provável forma que assumiria a transição do capitalismo para o socialismo, o que poderia transcorrer décadas.

Em sua análise do Regime Soviético, Trotsky sempre insistiu que o fortalecimento da burocracia não era a expressão das tendências orgânicas operantes na transição do capitalismo para o socialismo, mas a expressão das condições específicas que confrontava o Estado Soviético após a Revolução de Outubro: (1) O extremo atraso da economia Russa; (2) A devastação produzida pela Guerra Civil de 1818-21; (3) O cerco capitalista ao Estado Soviético, prolongado pela derrotada das revoluções na Europa Ocidental e na China. Tivesse a classe trabalhadora conquistado o poder nos países capitalistas avançados, a URSS não teria confrontado a combinação de circunstâncias que produziu a monstruosidade do stalinismo. A nova análise de Pablo sugeria, no entanto, que o stalinismo incorporava as tendências universais da transição histórica ao socialismo.

A contribuição de Isaac Deutscher

O debate dentro da Quarta Internacional realizou-se, como comentei acima, dentro de um contexto de grande expansão da autoridade e prestígio da União Soviética. Dentro de seções da intelectualidade, especialmente na Europa, uma nova atitude começou a surgir em relação ao regime stalinista. Afinal, apesar dos crimes que cometeu, o imenso sucesso da União Soviética não sugeria que Stalin era, em algum complexo sentido, o instrumento de grandes fins históricos? Por mais terríveis e brutais os métodos de Stalin, eles não avançavam a URSS rumo ao socialismo? Não teriam realmente os expurgos, verdadeiras tramas monstruosas, consolidado o regime Soviético e tornado possível a união que produziu a vitória de Stalingrado? Não seria verdade que um omelete não pode ser feito sem quebrar os ovos? Talvez o exemplo mais sofisticado e influente desse relativismo político e moral seja a biografia de Stalin, escrita por Isaac Deutscher e publicada em 1949.

Deutscher associou-se ao movimento trotskista na Polônia na década de 30. Opôs-se firmemente à criação da Quarta Internacional e desempenhou um papel central na formulação dos argumentos dos delegados poloneses que se opuseram a criação da Quarta Internacional na conferência de fundação de 1938. Com o estouro da guerra, Deutscher fugiu para Londres, onde se aprofundou no estudo da língua inglesa, dominando-a tão bem quanto seu grande compatriota, Joseph Conrad. Passou a contribuir em vários jornais e diários importantes da Inglaterra. Seu Stalin foi imediatamente aclamado como um trabalho competente.

O Stalin de Deutscher foi, em essência, uma desculpa política sofisticada a esse propósito. Não nega que Stalin falsificou grosseiramente o marxismo, traiu os ideais da Revolução de Outubro e assassinou os dirigentes do Partido Bolchevique. Mas, apesar disso tudo, Deutscher rejeitou a caracterização de Stalin de “coveiro da revolução” feita por Trotsky. Isso seria um exagero, dizia Deutscher. A carreira de Stalin foi marcada por um grande paradoxo. Por mais terríveis os crimes que ele possa ter cometido contra o bolchevismo, ele foi compelido, pela força das necessidades objetivas, a executar esse legado histórico. Pode ter sido um déspota, mas um “déspota revolucionário”, na tradição de Cromwell, Robespierre e Napoleão! Desta forma Deutscher explicava as políticas seguidas por Stalin ao final da II Guerra Mundial:

“Vimos que as duas políticas, a nacionalista e a revolucionária, chocam-se em pontos cruciais. Stalin, todavia, não fez uma clara opção entre as duas. Ele seguiu as duas linhas simultaneamente, mas, na mesma medida que a nacionalista predominou durante a guerra, a revolucionária terá seu momento depois dela.

“This development constitutes by far the most striking paradox in Stalin’s political evolution, so rich in paradox. For more than two decades he had preached the gospel of socialism in one country and violently asserted the self-sufficiency of Russian socialism. In practice, if not in precept, he had made Russia turn her back on world revolution—or was it Russia that had made him turn his back upon it? Now, in his supreme triumph, he disavowed, again in practice if not in precept, his own gospel; he discarded his own canon of Russia’s self-sufficiency and revived her interest in international revolution. Bolshevism appeared to have run full circle and returned to it starting point. Such, indeed, was the strange dialectics of Stalin’s victory that it seemed to turn that victory into Trotsky’s posthumous triumph. It was as if Stalin himself had crowned all his toils and labours, all his controversies and purges, by an unexpected vindication of his dead opponent” (Stalin: A Political Biography [New York: Oxford University Press, 1966], p. 552).

“Esse desenvolvimento constitui, de longe, o mais paradoxal na evolução política de Stalin, tão rica em paradoxo. Por mais de duas décadas, ele pregou o evangelho do socialismo em um só país, afirmando violentamente a auto-suficiência do socialismo russo. Na prática, se não no preceito, ele tinha feito a Rússia virar suas costas à revolução mundial — ou seria à Rússia que ele teria virado as costas? Agora, em seu triunfo supremo, ele negou, novamente na prática se não em preceitos, seu próprio evangelho; descartou seu próprio cânone de auto-suficiência da Rússia e reanimou seu interesse pela revolução internacional. O bolchevismo aparenta ter trilhado um longo círculo e retornado ao seu ponto de partida. Tal é, de fato, a estranha dialética da vitória de Stalin, que aparenta ter se tornado uma vitória póstuma contra Trosky. Foi como se o próprio Stalin tivesse coroado toda a sua rede de trabalhos e armadilhas, todas as suas controvérsias e expurgos, por uma inesperada reivindicação de seu oponente morto” (Stalin: A Political Biography [Stalin: Uma Biografia Política] New York: Oxford University Press, 1966, p. 552).

A descoberta e a ênfase em tais guinadas paradoxais muitas vezes são vistas, bastante incorretamente, como dialética. São, geralmente, nada mais que exibição pretensiosa e sofista, consistindo numa habilidade superficial em “ir de um lado para outro”. O retrato da política seguida por Stálin ao final da guerra como uma variante peculiar daquela defendida por Trotsky é, na verdade, uma grosseira falsificação não apenas do marxismo, como também dos fatos. As políticas de Stálin no pós-guerra visavam suprimir o movimento revolucionário da classe trabalhadora dentro e fora da União Soviética. Deutscher parece nem mesmo ter notado que, enquanto escrevia sua biografia, Stálin fazia de tudo para impedir a revolução na Grécia. De qualquer forma, a identificação da política stalinista do pós-guerra — formada basicamente pela defesa do “grande poder” e por políticas nacionalistas — ao socialismo internacionalista dos bolcheviques era completamente irracional.

Contudo, a obra de Deutscher influenciou profundamente Pablo e Mandel. É impossível não notar as semelhanças entre os conceitos utilizados por Deutscher em sua biografia de Stálin e aqueles encontrados nos documentos escritos por Pablo e Mandel entre 1949 e1953. Vejamos, por exemplo, a seguinte passagem do Stálin de Deutscher:

“Na concepção stalinista, na medida em que isto pode ser inferido da política de Stálin, o processo da revolução mundial ainda é global, pelo fato do antagonismo entre capitalismo e socialismo ser, como o anterior entre feudalismo e capitalismo, inerente a todas as civilizações modernas. Mas sua luta é contínua apenas no sentido histórico e filosófico mais amplo. É como algo que se estende sobre a vida de muitas gerações... O choque bélico entre os sistemas opostos será, ou poderá ser, seguido de uma trégua durável, que poderá estender-se por muitas décadas, no curso da qual o antagonismo entre os dois sistemas assumirá um caráter de rivalidade pacífica” (ibid, p. 553).

A proposição de Pablo sobre os “séculos de Estados Operários Deformados” foi a mais extravagante formulação de uma perspectiva, que encontrou a expressão embrionária no trecho citado acima. A transição do capitalismo para o socialismo poderia, de acordo com Deutscher, durar décadas. Essa transição provavelmente assumiria a forma de uma prolongada luta entre a União Soviética e as potências imperialistas. Nos meses que seguiram a publicação da biografia de Deutscher, Pablo e Mandel desenvolveram a fundo essa concepção, produzindo uma revisão absurdamente grotesca do trotskismo, à qual deram o nome de teoria da “Guerra-Revolução”.

A mudança na posição de Ernest Mandel

Ao compararmos o que Mandel escreveu durante os primeiros anos após a guerra com o que ele produziu após 1949, é natural sermos surpreendidos pela mudança gritante de sua orientação política. Será a tarefa de um biógrafo muito talentoso a de encobrir as condições e influências que produziram essa notável mudança. O próprio Cannon ficou perplexo com a evolução de Mandel e, logo após o racha, pensou que Mandel se separaria de Pablo. Ouvi dizer daqueles que atuaram nas disputas da época que as novas formulações de Pablo foram inicialmente opostas por Mandel e que ocorriam sérios confrontos entre os dois homens. Não sei se era o caso. Mas é improvável que Mandel tenha revisto suas opiniões simplesmente sob a pressão de um aliado político.

É preciso considerar que Mandel, apesar de sua defesa anterior de concepções históricas, ficou perplexo com a força aparente do movimento stalinista. Não somente a posição mundial da URSS havia se fortalecido, mas os partidos comunistas encabeçavam poderosos movimentos de massas ao redor do mundo. A vitória do Partido Comunista Chinês apareceu como mais um exemplo do potencial revolucionário do stalinismo que a Quarta Internacional falhara em reconhecer.

Na realidade, o Programa de Transição, o documento de fundação da Quarta Internacional, havia reconhecido que "é impossível negar categorica e antecipadamente a possibilidade teórica de que, sob a influência de uma combinação de circunstâncias excepcionais (guerra, derrota, quebra financeira, ofensiva revolucionária das massas etc.), os partidos pequeno-burgueses, incluídos aí os stalinistas, possam ir mais longe do que queiram no caminho da ruptura com a burguesia." Mas alertava que "se mesmo esta variante pouco provável se realizasse um dia em algum lugar (....) ela somente representaria um curto episódio em direção à ditadura do proletariado." (Leon Trotsky, The Transitional Program for Socialist Revolution [New York: Pathfinder Press, 1974], p. 95).

Não há dúvidas de que Mandel, abençoado com uma memória fotográfica e um conhecimento enciclopédico dos escritos publicados de Trotsky, conhecia essa passagem. Mas posições políticas não derivam meramente de livros. Shachtman não conhecia menos os escritos de Trotsky, com quem ele até mantera uma relação pessoal. Na verdade, ninguém conhecia mais as nuances sutis da escrita de Trotsky do que Max Eastman, seu tradutor e biógrafo. Mas tanto Eastman quanto Shachtman, desencorajados pelo poder e pelos crimes de Stalin, romperam politicamente com Trotsky. A posição dominante do stalinismo no movimento internacional dos trabalhadores havia destruído qualquer confiança que algum dia tiveram no papel revolucionário da classe trabalhadora. Em suas cabeças, isso elevara a burocracia stalinista ao nível de uma grande e independente força histórica. Uma vez que não consideravam mais a classe trabalhadora capaz de superar a dominação da burocracia stalinista, Eastman e, um pouco mais tarde, Shachtman confiaram tal tarefa ao imperialismo americano.

É claro, Pablo e Mandel possuíam objetivos políticos muito diferentes dos de Eastman e Schachtman. Mas as posições para que caminharam ao final dos anos 40 e 50 também procediam de um enorme exagero da força e papel histórico da burocracia e, inextricavelmente ligado a esse erro, uma subestimação da força e potencial revolucionários da classe trabalhadora.

Sob a influência dos sucessos políticos dos stalinistas e de sua dominação contínua sobre o movimento internacional dos trabalhadores, Mandel e Pablo se convenceram cada vez mais de que a realização do socialismo dependeria, em última análise, das ações da União Soviética e das burocracias stalinistas, e não apenas da classe trabalhadora dirigida pela Quarta Internacional.

No centro do criativo trabalho teórico e político de todos os grandes marxistas encontrava-se a convicção científica do papel histórico do proletariado como o coveiro do capitalismo. O socialismo havia deixado de ser uma utopia quando foi demonstrado, sobre as bases da concepção materialista da história, a existência, dentro do modo de produção capitalista, de uma força objetiva que representava a negação das formas existentes de propriedade e um princípio mais avançado de organização social. Se considerávamos ou não a perspectiva da revolução social viável dependia da avaliação que se fizesse do papel histórico e das habilidades da classe trabalhadora.

Duas conclusões diametralmente opostas poderiam ser tiradas dos eventos da primeira metade do século XX. Uma conclusão foi que a Revolução de Outubro de 1917 havia demonstrado que a classe trabalhadora poderia derrubar o capitalismo e lançar as bases para o estabelecimento de uma nova sociedade socialista. A outra foi que a degeneração do Estado Soviético e as várias derrotas da classe trabalhadora nas décadas de 1920 e 1930 haviam provado que a classe trabalhadora não possuía as qualidades históricas que o marxismo lhe atribuíra. As diferentes escolhas levavam a prognósticos históricos bem diferentes.

"Se tomamos como verdade", escreveu Trotsky em 1939, "que a causa das derrotas está enraizada nas características sociais do próprio proletariado, então a sociedade moderna terá que ser vista sem esperança. Sob condições do capitalismo decadente o proletariado não cresce numérica nem culturalmente. Não há bases, portanto, para esperar que ele irá em algum momento levantar-se ao nível das tarefas revolucionárias. O caso se apresenta de forma completamente diferente para aquele que têm esclarecido em sua mente o profundo antagonismo entre o desejo orgânico e profundo das massas trabalhadoras a se libertarem do maldito caos capitalista, e o caráter conservador, patriótico, extremamente burguês da direção trabalhista sobrevivente. Devemos escolher entre uma dessas concepções irreconciliáveis."(Leon Trotsky, In Defense of Marxism [London: New Park Publications, 1971], p.15).

Mas Pablo e Mandel buscaram fugir dessa escolha especulando sobre uma terceira alternativa: mesmo na ausência de um movimento consciente e politicamente independente da classe trabalhadora, a revolução socialista poderia realizar-se, de uma maneira não vislumbrada por Lênin ou Trotsky, por meio de uma burocracia (ou, como Pablo e Mandel viriam sugerir quando sua teoria se tornou mais elaborada, outras forças não-proletárias). O aspecto mais significativo da revisão do marxismo de Pablo e Mandel era sua tentativa de basear a perspectiva socialista em um roteiro no qual a classe trabalhadora fazia um papel secundário e meramente de apoio.

A base teórica dessa perspectiva encontrou sua maior expressão em um documento escrito por Pablo em 1951 intitulado "Aonde vamos?", que declarava: "Para nosso movimento, a realidade social objetiva consiste essencialmente no regime capitalista e no mundo stalinista. Mais ainda, quer gostemos ou não, esses dois elementos constituem de longe a realidade social objetiva, uma vez que a maioria absoluta das forças que opõem o capitalismo encontram-se agora mesmo sob a liderança ou influência da burocracia soviética." (National Education Department, Socialist Workers Party, Towards a History of the Fourth International, part 4, 1974, p. 5).

Aonde, de fato, iriam Mandel e Pablo? Certamente, não na direção traçada por Trotsky nos documentos programáticos sobre os quais a fundação da Quarta Internacional baseava-se. Realmente, a estrutura da realidade social apresentada por Pablo tinha muito pouco em comum com a concepção geral de história traçada por Marx e Engels. Se, como diziam Pablo e Mandel, a "realidade social objetiva" consistia no "regime capitalista" e no "mundo stalinista", o que acontecera com a classe trabalhadora? Nesse novo esquema, a classe trabalhadora deixava de existir como o instrumento independente, quanto mais o decisivo, de mudança revolucionária. Ao invés disso, ela existia apenas como um elemento subordinado dentro de uma nova realidade definida pela luta entre o "regime capitalista" e o "mundo stalinista". O destino do socialismo dependia do resultado dessa luta.

A teoria da "guerra-revolução"

As conseqüências dessa eliminação teórica da classe trabalhadora como força revolucionária básica encontrava sua expressão mais clara na maneira com que Pablo e Mandel descreviam o desenvolvimento da revolução socialista. Esta iria advir, especulavam eles, não do desenvolvimento dos conflitos entre as classes, mas através da erupção de um conflito militar nuclear entre o "regime capitalista", representado acima de tudo pelos Estados Unidos e o "mundo stalinista", cujo eixo era a União Soviética. Eles chamaram esta situação de "Guerra-revolução".

Quando alguém fala sobre isso hoje, soa tão estranho quanto um plano alienígena. Mas, na verdade, isso era o reflexo peculiar das condições políticas da Guerra Fria nas mentes dos teóricos radicais desorientados que não incluíam mais em seus cálculos a possibilidade da luta revolucionária pela classe trabalhadora e o impacto da atividade política da Quarta Internacional.

Realmente, se alguém aceitasse sua premissa subjacente — que a classe trabalhadora soviética e do leste europeu estava hipnotizada pelo stalinismo e a classe trabalhadora americana anestesiada pelo anticomunismo macartista — suas conclusões não eram tão estranhas como pareciam de primeira. Havia, afinal, um conflito real entre a União Soviética e o imperialismo americano. Havia a possibilidade de guerra entre esses dois poderes antagônicos, e seu conflito baseava-se certamente nas diferentes bases sociais dos regimes. Pablo e Mandel tiravam desse conflito o impulso essencial pela revolução socialista.

Nessas circunstâncias, a erupção da guerra entre a União Soviética e os Estados Unidos se transformaria, inevitavelmente, em um conflito revolucionário calamitoso entre dois sistemas sociais. O mundo stalinista, carregando, mesmo que de forma degenerada, o princípio socialista, seria compelido, sob pressão das massas que representava, a conduzir a luta contra o regime capitalista sobre bases revolucionárias. Portanto, de acordo com Pablo, revolução e guerra estavam "aproximando-se mais e tornando-se tão interligadas, ao ponto de ficarem quase indistinguíveis sob certas circunstâncias e em certos momentos". A explosão da guerra, mesmo se assumisse dimensões nucleares, seria avidamente aguardada como a trombeta do socialismo. A guerra-revolução, proclamou Pablo, era a concepção "sobre a qual as perspectivas e orientação dos marxistas revolucionários de nossa época deveriam apoiar-se." (ibid., p. 7).

Se o "mundo stalinista" prevalecesse nessa "guerra-revolução", de suas cinzas surgiriam Estados operários deformados que durariam por séculos. Pablo varreu o pudor dos mais sensíveis. Reconheceu que a nova perspectiva "chocará talvez os amantes de declamações e sonhos pacifistas, ou aqueles que já lamentam o fim mundial apocalíptico que prevêem após uma guerra atômica ou após a expansão mundial do stalinismo. Mas essas almas sensíveis não conseguem encontrar lugar entre os militantes e menos ainda entre os quadros marxistas revolucionários desta época terrível, em que a agudeza da luta de classes é levada até o fim. É a realidade objetiva que empurra a dialética da Guerra-revolução à frente, destruindo implacavelmente sonhos pacifistas e não permitindo nenhuma pausa no gigantesco uso de forças da revolução e da guerra, nem em sua luta de morte." (ibid.).

Pode ter sido uma surpresa para muitos dos admiradores tardios de Mandel que ele poderia ter assinado tamanho prognóstico irracional, para não dizer grosseiro. De fato, ele o fez.

"Não se exclui", escreve ele, "que a ampla devastação produzida pela Terceira Guerra Mundial provocará uma destruição enorme nas maquinarias de produção em grandes partes do mundo, o que então facilitaria deformações burocráticas das novas revoluções vitoriosas... [Mas] Nossa convicção na vitória da revolução americana, que dará ao mundo socialista uma capacidade produtiva extraordinária mesmo após uma guerra devastadora, nos permitirá encarar as perspectivas da democracia operária após uma Terceira Guerra com confiança." (National Education Department Socialist Workers Party, Towards a History of the Fourth International, June 1973, part 4, vol. 1, p. 5).

Ernest Mandel não havia enlouquecido; ele apenas adotara uma perspectiva louca que expressava o desespero político produzido pela perda total de confiança no potencial revolucionário da classe trabalhadora. Ou, para expressarmos o mesmo problema de uma forma um pouco diferente, ele não acreditava que era possível que a Quarta Internacional conquistasse a classe trabalhadora para seu programa revolucionário. Afinal, a luta contra a guerra imperialista havia ocupado o lugar central do programa marxista do século XX. A possibilidade de prevenir a guerra dependia do desenvolvimento da consciência revolucionária da classe trabalhadora internacional.

A perspectiva de Mandel provinha da concepção de que a classe trabalhadora, principalmente nos Estados Unidos, não poderia ser mobilizada contra sua classe dominante e de que a guerra era inevitável. Eles tentaram racionalizar seu pessimismo ao fazer do holocausto nuclear o pré-requisito para o socialismo.

Se os documentos preparados por Pablo e Mandel em 1951 e1953 tivessem sido meramente uma avaliação falsa e desorientada da situação objetiva, poder-se-ia concluir que estes representavam nada mais do que um lapso vergonhoso de avaliação e um episódio lamentável em suas vidas políticas. Mas esse "episódio" provou ser a experiência definitiva nas vidas de ambos os homens, assim como, de maneira muito mais importante, o início de uma tendência historicamente significativa dentro, ou, mais corretamente, oposta, à Quarta Internacional.

Isso fica claro quando revemos as conclusões práticas tiradas por Pablo e Mandel de sua análise política. Ao partir da premissa não-declarada, porém implícita, de que não era possível conquistar a classe trabalhadora para o programa independente da Quarta Internacional, Pablo e Mandel concluíram que a única alternativa viável que restava aos infortunados trotskistas era a de entrar e enterrar-se em quaisquer organizações de massas existentes nos países onde militavam. Essa tática foi chamada de "entrismo sui generis". Nos países onde os stalinistas reinavam absolutos, os trotskistas tinham que juntar-se a partidos comunistas e militar dentro deles, com o objetivo de os influenciarem e conduzi-los à esquerda.

Essa tática foi justificada sobre as bases de que organizações stalinistas poderiam, sob pressão dos eventos, "dar", como disse Mandel, "os primeiros passos no caminho da regeneração". O poder dos acontecimentos revolucionários tenderia a arrastar as organizações stalinistas à esquerda, e esse processo poderia ser facilitado pela influência dos trotskistas engajados no "entrismo sui generis".

A tarefa da Quarta Internacional, insistiam Pablo e Mandel, era a de aceitar a "necessidade de subordinação de todas os planos organizativos, de independência formal ou não, à integração real ao movimento de massas onde quer que este se expresse em cada país, ou então à integração em alguma corrente importante deste movimento que possa ser influenciada." (Michel Pablo, "Main Report to the Congress: World Trotskyism Rearms", Fourth International, vol. 12, no. 6, November-December 1951, p. 172).

O conteúdo essencial das inovações táticas propostas por Pablo e Mandel era que a tarefa estratégica central que havia sido colocada por Trotsky — a resolução da crise da direção revolucionária através da construção da Quarta Internacional — não era mais viável. Realmente, a perspectiva de conquistar a classe trabalhadora para um novo partido revolucionário era inútil. Como escreveu Pablo em 1953:

"Nas condições históricas atuais, a variante cada vez menos provável é aquela em que as massas, desiludidas pelos reformistas e stalinistas, romperão com suas organizações de massas para aglutinarem-se em torno de nossos núcleos atuais, com esses atuando única e exclusivamente de uma maneira independente, de fora" (Socialist Workers Party, Towards a History of the Fourth International, part 4, vol. 3, March 1974, p. 141).

No outono de 1953 havia ficado claro que a perspectiva de Pablo e Mandel colocava em questão a própria razão de ser da Quarta Internacional. Ao atuar sob esta perspectiva, Pablo, com o apoio de Mandel, buscou explorar sua posição de secretário internacional para forçar seções nacionais inteiras a liquidarem-se como organizações independentes e entrarem nas fileiras dos partidos stalinistas. Quando a seção francesa resistiu, ela foi arbitrariamente expulsa.

Os trotskistas na China receberam instruções semelhantes: "Para que realizemos a orientação de defesa incondicional da República Popular da China e o apoio crítico ao governo de Mao, os militantes chineses da Quarta Internacional devem integrar-se completamente ao movimento de massas de seu país, como decidido no Terceiro congresso da Quarta Internacional". (Fourth International, July-August 1952, p.. 118).

Os trotskistas chineses, trabalhando sob condições extremamente difíceis, haviam buscado defender os interesses independentes da classe trabalhadora e levantar a perspectiva de hegemonia da classe trabalhadora na revolução socialista. Haviam recusado por décadas seguir a orientação pequeno-burguesa dos maoístas, que haviam essencialmente abandonado a classe trabalhadora e baseado seu movimento no campesinato. Agora eram ridicularizados por Pablo e Mandel como se tivessem "abandonado" a revolução chinesa. Assim, eram ordenados a integrarem-se à organização maoísta. Antes dos trotskistas chineses conseguirem compreender as implicações políticas desse conselho brilhante, sua organização foi despedaçada por uma série de detenções. Muitos dos dirigentes trotskistas capturados no final de 1952 permaneceram na prisão pelos próximos 20 a 30 anos.

Consequentemente, a resistência política às perspectivas de Mandel e Pablo levaram a um racha na Quarta Internacional. O Comitê Internacional da Quarta Internacional foi formado em novembro de 1953 para opor-se aos revisionismos de Pablo e Mandel. Esta não é a situação ideal para contarmos em detalhes os eventos que levaram ao racha. No entanto, deve ser reforçado, justiça seja feita tanto a Mandel quanto a Pablo, que o racha não foi, na análise final, apenas um produto de suas maquinações. O próprio fato de sua perspectiva encontrar amplo apoio dentro da Quarta Internacional refletiu as condições políticas e relações sociais do período pós-guerra. Pablo e Mandel articularam o ceticismo político que havia sido produzido pela habilidade das burocracias social-democratas em manterem seu controle sobre a classe trabalhadora após a Segunda Guerra e bloquearam a erupção da revolução socialista.

Tanto Pablo quanto Mandel negaram furiosamente que suas posições representavam um rompimento com o trotskismo, ou que eles estavam colocando em dúvida a necessidade da Quarta Internacional. Mas o conteúdo real de seus revisionismos era expresso de forma mais clara, mesmo que de forma mais crua, na posição de seus apoiadores americanos, Cochran e Clarke:

"Listemos simplesmente algumas das conclusões da presente realidade: Vemos um mundo onde nossa perspectiva do stalinismo ser destruído durante a Segunda Guerra se mostrou errônea. Vemos um mundo onde o stalinismo é dominante na porção leste da Europa, onde os partidos comunistas são a direção da revolução colonial na Ásia, onde integram as organizações mais fortes da classe trabalhadora na Itália e França. No restante do ocidente, a Social-democracia foi ressuscitada e nos Estados Unidos, onde os trabalhistas ainda não avançaram para uma existência política independente, a burocracia reformista trabalhista permanece dominante...

"Porém, os seguidores de Cannon ainda mantêm a perspectiva já ultrapassada de que os pequenos núcleos irão, no futuro, tornar-se partidos revolucionários desafiando a todos inimigos e destruindo-os em batalha...

"O fato de ninguém poder vislumbrar de forma realista um racha nos velhos movimentos de trabalhadores antes dos próximos acontecimentos revolucionários é o sinal mais claro de que a velha análise trotskista tornou-se antiquada. Assim como antes da guerra, a vanguarda busca dar-se conta de suas aspirações revolucionárias dentro de partidos velhos, não deixando nenhum espaço para uma nova organização de massas...

"A própria formulação da resolução internacional deve levar-nos à conclusão de que os partidos revolucionários de amanhã não serão trotskistas, no sentido de aceitarem necessariamente a tradição de nosso movimento, nossa estima pela posição de Trotsky na hierarquia revolucionária ou todas suas análises e palavras de ordem específicas...

"Mas a última coisa no mundo que devemos tentar fazer é inculcar nas fileiras a necessidade de adotarem nossa tradição específica e imprimir sobre elas a verdade sobre nossas avaliações específicas trazidas por Trotsky desde 1923...

"Dissemos anteriormente que somente integrando-nos aos movimentos já existentes nossos quadros poderiam sobreviver e cumprir sua missão. Agora adicionaremos a essa proposição esta adicional: Somente abandonando todas as noções sectárias de impor nossa tradição específica sobre os movimentos de massa que desenvolveram-se em diferentes circunstâncias e sobre diferentes influências é que nossa abordagem poderá obter sucesso e garantir o futuro de nossos preciosos quadros...

"Apesar da situação nos Estados Unidos ser única, uma vez que a classe trabalhadora ainda não está organizada em seu próprio partido político, a orientação discutida aqui opera com força total. É preciso habitar a terra de ninguém de Cannon para difundir seriamente a teoria de que a classe trabalhadora americana, que ainda não atingiu a consciência de partido trabalhista, passará, na próxima luta, à bandeira da revolução de Cannon, ou que, o que constitui aproximadamente a mesma coisa, ela irá, de forma acelerada, mergulhar dentro e fora de um partido trabalhista para então juntar-se com Cannon e seus representantes para lançarem-se às barricadas...

"Baseando-nos nessa análise, nós nos orientamos na direção do movimento trabalhista organizado, principalmente os sindicatos de produção em massa do CIO... Isso não significa que estamos absolutamente certos de que um partido trabalhista será formado. A análise baseia-se, na verdade, na certeza de que o inevitável reagrupamento político passará pelos canais existentes do movimento trabalhista organizado e terá um caráter político capaz de unificar as massas num mínimo nível."

As teorias de Pablo e Mandel expressavam uma adaptação à posição dominante da burocracia e, finalmente, uma apologia a ela. Nos próximos anos, o trabalho de Mandel se concentraria na interpretação, sob o ponto de vista mais favorável, das atividades das burocracias. Tanto suas ações como os conflitos dentro de suas fileiras seriam invariavelmente interpretados por ele como a manifestação de amplas forças objetivas dentro das quais operariam, de forma misteriosa, processos revolucionários.

Após o racha, Mandel foi afligido pela acusação de ter se tornado um revisionista. Como poderia tal acusação ser lançada sobre ele, Ernest Germaine, o produtor de tantos artigos brilhantes? Como escreveu a George Breitman: "Você realmente acredita que estamos capitulando diante de Stalin, nós que nos ocupamos na construção do movimento trotskista, não sem sucesso, por todo o mundo?

A resposta de Cannon a Mandel

Uma resposta a Germaine-Mandel foi providenciada por James P. Cannon em uma análise perceptiva escrita em 1954:

"Nosso objetivo é fundamentalmente diferente daquele de Germaine. Em último caso, ele remete a uma teoria diferente do papel da vanguarda revolucionária e sua relação com outras tendências no movimento trabalhista. Germaine pensa que ele é ortodoxo nessa questão — chegou até a escrever um artigo sobre isso na Quatrième Internationale — mas, na prática, ele compromete a teoria. Apenas nós somos adeptos incondicionais da teoria leninista-trotskista do partido da vanguarda consciente e de seu papel como direção na luta revolucionária. Essa teoria adquire veemente atualidade e prevalece sobre todas as outras em nossa época presente".

"O problema da direção agora não se limita a manifestações espontâneas da luta de classes em um processo a longo prazo, nem mesmo à conquista do poder neste ou naquele país onde o capitalismo está especificamente fraco. É uma questão do desenvolvimento da revolução internacional e da transformação socialista da sociedade. Admitir que isso possa acontecer automaticamente é, de fato, abandonar o marxismo por completo. Não, isso só pode ser um ato consciente e requer necessariamente a direção de um partido marxista que represente o elemento consciente no processo histórico. Nenhum outro partido o fará. Nenhuma outra tendência no movimento trabalhista pode ser reconhecida como um substituto eficiente. Por essa razão, nossa atitude diante de todos os outros partidos é inconciliavelmente hostil".

"Se a correlação de forças requer uma adaptação dos quadros da vanguarda a organizações dominadas no momento por tais tendências hostis — stalinistas, social-democratas, centristas — então tal adaptação deve sempre ser vista como uma adaptação tática, para facilitar a luta contra estas e nunca para efetivar uma reconciliação com elas, nunca para atribuir-lhes um papel histórico decisivo, deixando os marxistas encarregados da tarefa menor de dar-lhes conselhos de amigo e fazer-lhes críticas 'leais' à moda dos comentários pablistas sobre a greve geral francesa." (Trotskyism Versus Revisionism, vol.. 2 [London: New Park, 1974], p. 65).

Notas:
[1] Max Shachtman — antigo dirigente do SWP que, liderando uma fração pequeno-burguesa junto de J. Burnham e Abern, rompeu com o partido formando o Workers Party em 1940. Ainda dentro do SWP, defenderam contra a adoção do Programa de Transição, de Trotsky, como programa do partido. Alguns dos principais “dirigentes” desta fração, pouco após romper do SWP, romperam também com o marxismo. Burnham, inclusive, serviu como informante do governo americano por anos, tendo recebido uma Medalha de Honra Presidencial de Ronald Reagan em 1983.

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