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Perspectivas

Um ano da tentativa de golpe fascista nos EUA

Publicado originalmente em 6 de janeiro de 2022

Hoje faz um ano desde a tentativa de Donald Trump de reverter o resultado da eleição de 2020, derrubar a Constituição e estabelecer uma ditadura.

Dois eventos serão realizados neste um ano do 6 de janeiro, um organizado pelos democratas no Capitólio dos EUA, o outro por Trump em um comício no Arizona na semana seguinte. O conteúdo dos discursos que serão proferidos tanto por Biden quanto por Trump é totalmente previsível.

Biden oferecerá uma série de banalidades sobre a santidade da democracia americana sem explicar o que ocorreu na tentativa de golpe, quem esteve envolvido e quão perto esteve de triunfar. Ele vai esconder a seriedade do 6 de janeiro e a ameaça contínua à democracia defendendo a unidade com um Partido Republicano que está profundamente implicado no próprio golpe.

Manifestantes de direita fiéis a Donald Trump invadindo o Capitólio dos EUA em 6 de janeiro de 2021 (AP Photo/Jose Luis Magana)

Trump irá encobrir o seu plano descarado de tomar o poder, estabelecer uma ditadura e matar milhares de pessoas no processo com suas mentiras fascistoides padrão. Ele alegará que Biden roubou a eleição através dos votos por correio e alertará sobre o perigo do socialismo. Em preparação para o evento, Trump e seus co-conspiradores, como Stephen Miller e Steven Bannon, estarão examinando o Mein Kampf e os escritos de Goebbels em busca de inspiração.

Um ano depois da tentativa de golpe de 6 de janeiro, cinco pontos principais devem ser enfatizados:

  1. A invasão ao Capitólio em 6 de janeiro de 2021 foi uma tentativa de estabelecer uma ditadura. Esse evento único foi um ponto de inflexão na história americana, uma tentativa de golpe de misericórdia do presidente para derrubar a eleição a fim de permanecer no poder e estabelecer uma ditadura personalista.
  2. Essa tentativa quase foi bem-sucedida. A tentativa de golpe chegou extraordinariamente perto de conseguir derrubar a eleição. Ela fracassou inteiramente por causa de contratempos organizacionais, inexperiência e, em certos casos, acidentes diretos.
  3. Nenhuma instituição do establishment político se opôs ativamente à tentativa de estabelecer uma ditadura. A polícia estava intencionalmente com falta de pessoal e muitas vezes confraternizava com a multidão. Os militares se recusaram a intervir durante 199 minutos, proporcionando a Trump a oportunidade para agir. O Partido Democrata se recusou a fazer qualquer chamado à população para se opor ao golpe por medo de desencadear uma explosão de oposição social.
  4. O perigo de ditadura continua urgente. Tentativas de minimizar os eventos do 6 de janeiro facilitam os preparativos contínuos de Trump para planos futuros. É agora abertamente reconhecido que Trump e o Partido Republicano estão preparando suas próximas tentativas de ditadura.
  5. A única força social que pode deter uma ditadura é a classe trabalhadora.

1. A invasão ao Capitólio em 6 de janeiro de 2021 foi uma tentativa de estabelecer uma ditadura

Em 6 de janeiro, Trump estava transmitindo há mais de um ano os seus planos de ditadura em público. Ele tentou invocar a Lei de Insurreição em resposta aos protestos populares contra a violência policial no decorrer de 2020. No período que antecedeu as eleições, disse que não aceitaria o resultado se perdesse. Quando foi derrotado, ele culpou a fraude nos votos por correio e instou seus partidários a apoiar sua tentativa de permanecer no poder.

Donald Trump, entre o Procurador Geral William Barr, o Secretário de Defesa Mark Esper e o General Mark Milley, Presidente do Estado-Maior Conjunto, após a repressão dos protestos na Praça Lafayette em 1º de junho de 2020. (AP Photo/Patrick Semansky, Arquivo)

No ano anterior, informações relativas aos preparativos para o 6 de janeiro vieram à tona, estabelecendo os objetivos dos conspiradores sem sombra de dúvida.

Nas semanas que antecederam o 6 de janeiro de 2021, Trump e os assessores Stephen Bannon e Peter Navarro organizaram mais de 100 parlamentares republicanos em uma tentativa de atrasar a certificação do Colégio Eleitoral. O próprio Navarro disse recentemente ao Daily Beast: “Passamos muito tempo alinhando mais de 100 parlamentares, incluindo alguns senadores. Tudo começou perfeitamente. Às 13h, [o Deputado Paul] Gosar e [o Senador Ted] Cruz fizeram exatamente o que se esperava deles. Era um plano perfeito.”

O descaramento com que os conspiradores reconhecem seus objetivos é, em si, uma prova da fraqueza da oposição dos democratas. Navarro explicou em suas recentes memórias, In Trump Time, que o plano, apelidado de “Green Bay Sweep” em homenagem à jogada do time de futebol americano, foi idealizado por Bannon em coordenação com o próprio Trump. Seu objetivo era atrasar a certificação e dar tempo para que as forças paramilitares e os manifestantes pró-Trump seguissem as ordens de Trump para tomar o Congresso e prender os parlamentares em seu interior.

“A beleza política e legal da estratégia era esta”, escreveu Navarro. “Por lei, tanto a Câmara dos Deputados quanto o Senado devem realizar até duas horas de debate por estado em cada contestação solicitada. Considerando os seis estados com o resultado eleitoral apertado, isso daria até vinte e quatro horas de audiências televisionadas nacionalmente através das duas casas do Congresso.” A primeira pessoa com quem Navarro se comunicou na manhã de 6 de janeiro foi Bannon. “Eu verifico minhas mensagens e fico satisfeito de ver que Steve Bannon nos tem totalmente prontos para implementar nossa ‘Green Bay Sweep’ no Capitólio. Chame a peça. Execute a peça.” Trump, escreveu Navarro, “certamente estava de acordo com a estratégia. Basta ouvir o discurso dele naquele dia.”

Os organizadores fascistas dos protestos realizados em Washington naquele dia disseram aos investigadores do Congresso que participaram de “dezenas” de reuniões de planejamento com parlamentares que estavam envolvidos no plano golpista.

A Rolling Stone informou em outubro que “Alguns dos planejadores dos comícios pró-Trump que aconteceram em Washington D.C. começaram a se comunicar com os investigadores do Congresso e compartilhar novas informações sobre o que aconteceu quando os apoiadores do ex-presidente invadiram o Capitólio dos EUA” e de “denúncias explosivas detalhadas de que vários parlamentares estavam intimamente envolvidos no planejamento tanto dos esforços de Trump para reverter a sua derrota eleitoral quanto dos eventos do 6 de janeiro que se tornaram violentos.”

Grupos paramilitares e de extrema direita convocados no início de 2020 para apoiar a política mortal da classe dominante durante a pandemia foram chamados à ação, alguns formando equipes de resposta rápida com armas escondidas no caso de combates de rua. Esses grupos de extrema direita foram promovidos por grandes empresas e pela mídia na primavera de 2020 como ponta de lança dos esforços para revogar as medidas temporárias de lockdown impostas em março, após uma onda de greves nos EUA e internacionalmente ter forçado uma paralisação inicial da produção. As camadas sociais para as quais Trump e Wall Street apelaram para “libertar” os estados dos lockdowns nas capitais estaduais em abril e maio de 2020 cultivaram laços estreitos com os líderes republicanos e responderam ao chamado de Trump para invadir o Congresso menos de um ano depois.

À medida que mais e mais detalhes vêm à tona, é agora reconhecido em escala internacional que o que aconteceu levou os EUA ao precipício imediato da ditadura.

Em seu livro Peril, o jornalista Bob Woodward relatou que o general chinês Li Zoucheng falou com Mark Milley, Presidente do Estado-Maior Conjunto, e “estava muito preocupado que os Estados Unidos iriam realmente entrar em colapso”. Woodward relatou que depois do 6 de janeiro, “os militares chineses entraram em alerta militar, assim como os russos, assim como os iranianos”.

O acadêmico canadense Thomas Homer-Dixon publicou um artigo no Globe and Mail intitulado “A política americana está rachada e pode colapsar. O Canadá deve se preparar”. O artigo de 31 de dezembro alerta que os Estados Unidos “está se tornando cada vez mais ingovernável” e “pode descer à guerra civil”. Homer-Dixon alerta que uma segunda presidência Trump “poderia ser totalmente sem restrições, nacional e internacionalmente” e que “não é incorreto usar a palavra F” - fascismo. Artigos semelhantes estão aparecendo nas principais publicações do mundo.

2. A tentativa de golpe de 6 de janeiro quase foi bem-sucedida

A trama de Trump quase foi bem-sucedida. Mais de 120 deputados republicanos e seis senadores apoiaram objeções sem fundamento à certificação do Colégio Eleitoral. Pouco tempo depois, após Trump orientar a multidão a marchar sobre o edifício do Capitólio, os parlamentares quase não conseguiram escapar da multidão enfurecida. O vice-presidente Mike Pence foi levado para um lugar seguro enquanto a multidão pedia que fosse enforcado. A presidente da Câmara, Nancy Pelosi, e o então líder democrata do Senado, Charles Schumer, se esconderam em um bunker sob o Capitólio e chamaram o Pentágono, implorando-lhes para limpar o terreno e proteger suas vidas.

Se a multidão tivesse conseguido capturar os parlamentares, o Partido Democrata teria negociado sua libertação em troca de um acordo que mantivesse Trump no poder.

O fracasso da trama foi inteiramente devido a erros táticos e inexperiência por parte da multidão e de seus organizadores. Às vezes, a trama pareceu falhar devido ao puro acaso. Ao invadir o prédio, a multidão seguiu um policial que os afastou de onde parlamentares estavam reunidos. Em outro ponto, a multidão passou próximo a uma porta que a teria levado a outro grupo de parlamentares.

3. Nenhuma instituição do establishment político se opôs ativamente à tentativa de estabelecer uma ditadura

A trama não fracassou porque encontrou oposição do establishment político e do Estado. Nem uma única instituição da política burguesa agiu para impedir a tentativa de golpe.

A polícia estava com falta de pessoal e muitos policiais saudaram os manifestantes no edifício do Capitólio. Os militares esperaram 199 minutos críticos enquanto a multidão ocupava o Capitólio e invadia os escritórios do Congresso em busca de parlamentares e de seus funcionários.

Mais detalhes surgiram recentemente sobre o papel desempenhado pelos militares em 6 de janeiro. William Arkin, da Newsweek, informou em 2 de janeiro que Trump planejava chamar os militares para as ruas no dia do golpe, e que a liderança do Pentágono estava preocupada que uma ruptura ocorresse nas forças armadas.

O Partido Democrata não fez nenhum chamado para a população se opor ao golpe, apesar de 700.000 pessoas viverem dentro dos limites da cidade de Washington D.C., onde 95% dos votos obtidos foram contra o Trump. Nem um único parlamentar democrata usou seu celular para fazer um apelo nas redes sociais chamando todos os opositores à ditadura para as ruas das cidades americanas. Nem um único governador democrata ou prefeito fez um chamado para que fossem realizados protestos massivos.

O presidente eleito Joe Biden, de quem o governo Trump estava tentando impedir de tomar posse, levou horas para se dirigir à nação. Quando acabou falando, Biden deu o notável passo de convidar Trump para fazer um discurso televisivo para a nação em meio ao desdobramento do golpe. Em um discurso de 10 minutos proferido na noite de 6 de janeiro, Biden disse que “Nossa democracia está sob um ataque sem precedentes”, declarando: “Portanto, chamo o Presidente Trump a ir à televisão nacional, agora, para cumprir seu juramento e defender a Constituição e exigir o fim deste cerco”.

O apelo de Biden a Trump deu o tom para a resposta do Partido Democrata no ano que se seguiu.

A investigação do Congresso se move aos trancos e barrancos, em grande parte pelas costas da população, mas Trump não foi processado criminalmente por seu papel na tentativa de derrubar a Constituição e estabelecer uma ditadura. Ele está atualmente vivendo em seu complexo em Mar-a-Lago. Nenhum dos parlamentares que apoiou a tentativa de golpe foi removido do Congresso ou acusado de crimes. Uma classe dominante que prendeu milhares de pessoas empobrecidas da Ásia Central por suspeita de terrorismo após o 11 de setembro e prendeu e deportou inúmeros comunistas e socialistas ao longo do século XX tomou medidas apenas contra os participantes de baixo escalão do 6 de janeiro, deixando praticamente intocados aqueles que dirigiam a multidão. Até mesmo a podre República de Weimar tomou mais medidas contra Hitler, que estava na prisão um ano depois que o Putsch da Cervejaria fracassou em 1923 (embora em condições confortáveis).

A resposta dos democratas ao 6 de janeiro é ditada acima de tudo pelo medo da oposição social vinda de baixo. Seu papel principal é anestesiar o descontentamento, apoiar o sistema bipartidário, usar políticas raciais e de gênero para dividir a classe trabalhadora e bloquear o desenvolvimento de um movimento contra a ameaça de ditadura. Sua resposta ao 6 de janeiro foi fazer todo o possível para minimizar o que aconteceu, a fim de evitar que a população tomasse consciência de quão próximo o país chegou da ditadura.

Ao longo do mandato de Trump, os democratas ignoraram os ataques de Trump aos direitos democráticos e se opuseram a ele por questões de política externa, alegando que ele era um mordomo ineficiente dos interesses do imperialismo americano. Levados ao poder em uma onda de oposição a Trump, os democratas continuaram as políticas de combate à pandemia de seu governo, sacrificando centenas de milhares de vidas para alimentar a bonança especulativa em Wall Street.

Suas infinitas referências à raça, gênero e orientação sexual visam inteiramente enriquecer os setores privilegiados dos 10% mais ricos da sociedade e nada têm a ver com a defesa dos direitos democráticos da população. No exemplo mais flagrante, os democratas continuaram os piores aspectos dos ataques de Trump aos imigrantes, batendo recordes de deportados para países devastados por décadas de guerra imperialista e por ditaduras apoiadas pelos EUA. A luta contra Trump e a ditadura não se dará através desse partido.

4. O perigo de ditadura continua urgente

É amplamente compreendido que Trump e os republicanos estão planejando outra operação golpista. Colunistas na mídia corporativa, observando o um ano do 6 de janeiro, reconhecem que a ditadura é uma possibilidade iminente e consideram a chance de uma guerra civil.

O Partido Republicano tem se transformado em um partido fascistoide que não está preparado para aceitar o resultado de eleições democráticas. Como o cientista político de Harvard Steven Levitsky disse recentemente à AP, “não está claro que o Partido Republicano esteja mais disposto a aceitar a derrota”.

Seguindo a liderança de Trump, o Partido Republicano legitimou a violência vigilante como parte do processo político. Seus próprios parlamentares ameaçam rotineiramente com violência os opositores democratas a fim de assegurar seus fins políticos de direita. As ameaças de violência contra os parlamentares democratas aumentaram 107 % no último ano. O Partido Republicano está engajado em esforços claros para impossibilitar que milhões de eleitores votem através de restrições eleitorais ilegais e está instalando agentes eleitorais locais que anularão futuras eleições. Ele está preparando seus próximos movimentos autoritários à vista de todos.

Autoridades das forças armadas alertam agora que Trump está tentando solidificar seu apoio dentro do Pentágono em preparação para suas próximas conspirações. Em dezembro, o Washington Post publicou uma declaração de ex-generais intitulada “Os militares devem se preparar agora para uma insurreição em 2024”, que alerta:

À medida que nos aproximamos do primeiro aniversário da insurreição mortal no Capitólio dos EUA, nós - todos nós ex-oficiais militares do alto escalão - estamos cada vez mais preocupados com as consequências das eleições presidenciais de 2024 e o potencial de caos letal dentro de nossas forças armadas, o que colocaria todos os americanos em grave risco. Resumindo: ficamos aterrorizados só de pensar em um golpe bem-sucedido da próxima vez.

A declaração publicada no Post alerta ainda sobre “o potencial para uma quebra total da cadeia de comando” dentro do Pentágono e conclui que, na eleição de 2024, “Com as lealdades divididas, alguns [comandantes] poderiam seguir ordens do comandante-em-chefe legítimo, enquanto outros poderiam seguir o perdedor Trumpiano. As armas podem não estar seguras, dependendo de quem as supervisiona. Sob tal cenário, não é estranho dizer que uma ruptura militar poderia levar a uma guerra civil.”

Até mesmo o conselho editorial do New York Times reconheceu recentemente que a inação dos Democratas está abrindo o caminho para futuras tentativas de golpe. A declaração do Times de janeiro, intitulada “Todo dia é 6 de janeiro agora”, conclui:

Devemos parar de subestimar a ameaça que o país enfrenta. Inúmeras vezes nos últimos seis anos, incluindo os eventos do 6 de janeiro, o Sr. Trump e seus aliados projetaram abertamente sua intenção de fazer algo ultrajante ou ilegal ou destrutivo. Sempre, a resposta comum era que eles não eram sérios ou que nunca seriam bem sucedidos. Quantas vezes teremos que provar que estamos errados antes de levá-lo a sério? Quanto mais cedo o fizermos, mais cedo poderemos esperar salvar uma democracia que está em grave perigo.

Isso é um reconhecimento de que toda a mídia corporativa tem se empenhado sistematicamente para minimizar a gravidade dos eventos do 6 de janeiro e que, ao fazê-lo, o establishment da mídia facilitou objetivamente a trama de Trump. O próprio Times tem desempenhado um papel crítico não apenas em minimizar os eventos do 6 de janeiro, mas também em elevar os responsáveis pela sua realização. Em outubro de 2021, o Times publicou um artigo de opinião do senador Josh Hawley, um dos mais destacados golpistas do Senado, e mais tarde elogiou suas sábias propostas para enfrentar a crise da cadeia de abastecimento.

Os eventos do 6 de janeiro eram previsíveis. Isso é comprovado pela cobertura do World Socialist Web Site, que alertou diariamente por mais de um ano até a eleição que Trump estava preparando uma tentativa de derrubar a Constituição e estabelecer uma ditadura.

O editorial do Times é uma denúncia não só do próprio jornal, mas também das publicações de “esquerda” em torno do Partido Democrata e dos representantes das tendências libertárias que continuam minimizando a importância do 6 de janeiro ou que agora simpatizam abertamente com Trump.

Em um artigo de 26 de janeiro de 2021, “O significado do 6 de janeiro”, o historiador Bryan Palmer adota o tom altivo de um acadêmico que está acima de tudo. A conclusão de Palmer é que os eventos do 6 de janeiro não foram uma insurreição e que “a esquerda” deve rejeitar a noção de que isso representava uma ameaça aos direitos democráticos. Em uma seção intitulada “Insurreição como hipérbole”, Palmer resume seu argumento, ridicularizando aqueles que chamam o 6 de janeiro de tentativa de golpe: “A hipérbole fluiu enquanto o rastro de lágrimas se transformava em um maremoto”.

Palmer fala com total indiferença diante da perspectiva de uma ditadura fascista. Ele até elogia a multidão fascista por “interrogar e examinar criticamente” as instituições estatais, como se indivíduos vestindo blusas escrito “Camp Auschwitz” tivessem desfigurado o Capitólio porque se opõem ao registro histórico criminoso do imperialismo americano. Por todas as denúncias de Palmer sobre a democracia burguesa, ele só serve para justificar e se desculpar pelos esforços do Partido Democrata para minimizar o perigo.

O Left Voice - um dos sites associados a uma rede internacional do qual faz parte o brasileiro Esquerda Diário, também vinculado ao argentino Partido dos Trabalhadores Socialistas (PTS) - escreveu recentemente que o dia 6 de janeiro “não foi um golpe fascista ou mesmo uma tentativa de golpe”. Segundo o Left Voice, o 6 de janeiro foi um sinal da força do establishment político. O Left Voice chama o dia 6 de janeiro de “um momento que proporcionou uma oportunidade para o establishment do regime político e da mídia - incluindo políticos de ambos os partidos - para começar a restabelecer a legitimidade através de sua rejeição aos arruaceiros de direita”.

Depois do 6 de janeiro, a crise política diminuiu. “Em termos gerais, este é o cenário político em que nos encontramos”, concluem: a crise “recuou à latência”. O Left Voice chega a essa conclusão declarando que a classe trabalhadora é passiva. Em 6 de janeiro e após os seus desdobramentos, “As massas que haviam sido mobilizadas contra Trump durante os últimos quatro anos procuraram Biden e o regime para responder - confiaram neles para cuidar disso, e não houve resposta da classe trabalhadora e dos oprimidos”.

Parafraseando Trotsky, “estes advogados do Partido Democrata negam a responsabilidade de seus líderes a fim de escapar assim de sua própria responsabilidade”. Embora o Left Voice se apresente como um crítico aos democratas, na verdade, justifica a impotência dos democratas culpando a classe trabalhadora pela recusa dos democratas em mobilizar a população contra o golpe!

Um terceiro setor da classe média radical, composta por elementos anarquistas e libertários como Glenn Greenwald e Jimmy Dore, ficaram impressionados com a tentativa de golpe e se tornaram seus apologistas. Profundamente desorientados, se transformaram de apoiadores do Partido Democrata em defensores do assassino fascista Kyle Rittenhouse e opositores da obrigatoriedade do uso de máscaras e da vacinação. Tais indivíduos personificam os piores traços da política radical americana: pragmatismo, pessimismo, nacionalismo, anticomunismo e individualismo extremo. Sua preocupação professada de que as restrições à saúde infringem os “direitos individuais” coincide inteiramente com os interesses de Wall Street e tiram os direitos sociais de bilhões de trabalhadores de se protegerem contra doenças e a morte.

5. A única força social que pode deter uma ditadura é a classe trabalhadora

O 6 de janeiro não é um acidente histórico, mas o resultado da prolongada decadência do sistema político americano. Durante décadas, os dois partidos trabalharam juntos para impor cortes maciços nos programas sociais, promover uma permanente guerra imperialista, facilitar a desenfreada especulação financeira e abolir os direitos democráticos. A mídia corporativa e o establishment político têm deliberadamente cultivado elementos de extrema direita como um bastião contra a classe trabalhadora. O Partido Democrata substituiu qualquer associação anterior às reformas sociais por uma obsessão com raça e identidade que alimenta e fortalece a extrema direita.

Em 2000, em meio à crise em torno das eleições presidenciais americanas, o Comitê Internacional da Quarta Internacional explicou que a democracia burguesa não poderia sobreviver sobre as bases podres da sociedade cada vez mais oligárquica dos Estados Unidos. Em dezembro, com a Suprema Corte deliberando sobre a interrupção da contagem dos votos na Flórida, o presidente do Conselho Editorial do WSWS Internacional, David North, disse:

O que a decisão desta corte revelará é até onde a classe dominante americana está preparada para romper com as normas democráticas e constitucionais burguesas tradicionais. Está ela preparada para sancionar fraudes eleitorais e a supressão de votos? Está preparada para instalar na Casa Branca um candidato que tenha alcançado esse cargo através de métodos flagrantemente ilegais e antidemocráticos? Uma parte substancial da elite dominante americana, e talvez até mesmo uma maioria na Suprema Corte, está preparada para fazer exatamente isso. Isso porque, entre esta camada social, houve uma dramática erosão do apoio às formas tradicionais de democracia burguesa.

O desenvolvimento desastroso da pandemia do coronavírus ao longo do último ano intensificou enormemente as contradições sociais que deram origem aos eventos do 6 de janeiro. As forças de reação política mobilizadas por Trump se mostraram críticas na política assassina da classe dominante para reabrir os negócios e as escolas e infectar o maior número possível de pessoas com a COVID-19.

Nenhuma das questões econômicas e sociais que deram origem aos eventos do 6 de janeiro foi resolvida. O Partido Democrata provou ser totalmente contrário à implementação de políticas necessárias para elevar o nível de vida e impedir a propagação da pandemia, pois representa os interesses da mesma aristocracia financeira que prioriza os lucros acima da vida humana.

Mas nos últimos anos tem havido um aumento histórico global de greves e protestos em massa contra a desigualdade. A classe trabalhadora, mais interconectada internacionalmente e urbana do que nunca, é a força social que tem o poder de esmagar o fascismo e a ameaça de ditadura.

A oposição cresce diariamente contra a propagação desenfreada da pandemia nos locais de trabalho e nas escolas em todo o mundo. A proteção da sociedade contra a infecção em massa e o espectro do fascismo exige atacar ambos em sua fonte comum: o sistema capitalista. A celebração vertiginosa do parasitismo e da especulação, representados pelo Dow Jones, Nasdaq e S&P 500, está impulsionando a propagação da pandemia, e o crescimento maciço da desigualdade exige a adoção de métodos de governo cada vez mais impiedosos e antidemocráticos. A riqueza da aristocracia financeira deve ser expropriada, o comércio deve ser suspenso, as grandes corporações devem ser nacionalizadas e Wall Street deve ser fechada.

O movimento da classe trabalhadora só pode reconhecer seu imenso potencial através da luta para democratizar todos os aspectos da vida política, social e econômica, incluindo o controle democrático dos trabalhadores sobre a produção e sua segurança contra a COVID-19. Isso significa libertar as forças produtivas do mundo da ditadura do lucro capitalista e colocar a produção sob o controle democrático e social da classe trabalhadora.

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