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Sudão estoura enquanto milhões passam fome na África por guerra na Ucrânia e sanções contra Rússia

Publicado originalmente em 22 de março de 2022

Milhares de trabalhadores e estudantes saíram às ruas em cidades de todo o Sudão em protesto contra os preços dos alimentos e dos combustíveis. Os preços dos alimentos estão entre 100 e 200% mais altos do que há um ano e a inflação atingiu 250%.

Na semana passada na capital, Cartum, os manifestantes foram recebidos com gás lacrimogêneo e granadas de efeito moral quando chegaram à menos de 200 metros do palácio presidencial.

Protestantes contra o golpe participam nas atuais manifestações contra o governo militar em Cartum, Sudão, em 14 de março de 2022 (AP Photo/Marwan Ali)

Os protestos em massa ocorrem após a forte queda no valor da libra sudanesa no último mês, ao mesmo tempo em que a junta militar encerrava a sua política de câmbio fixo, e acontecem simultaneamente com contínuas greves de professores e ferroviários em Atbara por conta de seus salários extremamente baixos.

Segundo o Programa Mundial de Alimentos da Organização das Nações Unidas (PMA), quase metade dos 44 milhões de sudaneses enfrentará a fome neste ano como resultado da expulsão do primeiro-ministro Abdalla Hamdouk pelos militares em outubro passado (levando as instituições financeiras internacionais a suspender bilhões de dólares em auxílio crucial para o orçamento), da guerra na Ucrânia e das sanções impostas sobre a Rússia.

O PMA diz que cerca de 20 milhões de pessoas estão provavelmente em situação de “insegurança alimentar aguda” de “emergência” ou “crise”, o dobro do número de 2021. A situação piorou drasticamente devido ao aumento dos preços globais dos grãos, a escassez de moeda estrangeira e a seca em algumas partes do país, alimentando o crescente movimento de protesto exigindo o fim do governo militar.

Como muitos países da África, o Sudão obteve cerca de 35% das suas importações de trigo da Rússia e da Ucrânia em 2021 e, hoje, deve encontrar um fornecedor alternativo cobrando preços muito maiores. No ano passado, a Rússia e a Ucrânia foram responsáveis por quase um terço das exportações mundiais de grãos, um quinto do comércio de milho e quase 80% da produção de óleo de girassol. De acordo com o departamento de Agricultura dos Estados Unidos, os suprimentos mundiais de trigo serão menores, com as exportações da Rússia e da Ucrânia provavelmente 7 milhões de toneladas menores do que o esperado antes da guerra.

Após a guerra provocada pelos EUA/NATO, as exportações da Rússia e da Ucrânia praticamente pararam por conta das sanções impostas por Washington e pelas potências européias sobre os bancos, transportadoras e linhas aéreas da Rússia e da proibição da exportação de grãos e outros produtos alimentícios na Ucrânia para evitar uma crise humanitária interna. Os portos do norte do Mar Negro, onde estão ocorrendo alguns dos combates mais destrutivos e a maior parte das exportações de grãos da Rússia e da Ucrânia são embarcadas, fecharam, e a proibição de vôos está fazendo com que aviões cargueiros contornem o espaço aéreo russo. Isso tem aumentado os preços dos alimentos, já em ascensão devido a problemas relacionados à cadeia de abastecimento durante a pandemia, e aprofundado a pobreza.

A região norte do Mar Negro exporta pelo menos 12% das calorias alimentares comercializadas no mundo, enquanto 45% das exportações da Ucrânia ‒ que possui um terço das terras mais férteis do mundo ‒ estão relacionadas à agricultura. Como algumas das exportações da Ucrânia são utilizadas para alimentação animal, a proibição da exportação e as interrupções podem causar impacto sobre o setor pecuário. A fuga dos agricultores, escapando dos combates e da destruição da infraestrutura e dos equipamentos causada pela guerra, ameaçam a época de plantio no mês de abril.

De acordo com o Fundo Monetário Internacional (FMI), o preço do trigo aumentou 80% entre abril de 2020 e dezembro de 2021 com a pandemia, enviando os preços dos alimentos para os seus níveis mais altos desde os anos 1970. Até agora, o preço do trigo saltou 37% e o do milho 21% em 2022. O preço do trigo está 80% mais alto do que há seis meses, e o milho subiu 58%.

Entre os 54 países da África, 23 dependem da Rússia e da Ucrânia para mais da metade das importações de um de seus produtos básicos. Alguns países são ainda mais dependentes: Sudão, Egito, Tanzânia, Eritréia e Benin importam 80% de seu trigo e Argélia, Sudão e Tunísia importam mais de 95% do óleo de girassol da Rússia e Ucrânia. Esses países também estão vivendo um aumento dos preços, exacerbando a fome em condições nas quais a maioria das elites africanas não oferecem nenhuma rede de proteção social.

O custo de vida irá aumentar, particularmente nos países que importam a maior parte dos seus alimentos e onde os efeitos econômicos da COVID-19 são mais duros: Nigéria, Quênia, Gana, Ruanda e Egito. Isso irá provavelmente dobrar o número de pessoas em situação de fome na África, que deverá atingir mais de 500 milhões dos 1,2 bilhão de pessoas no continente.

Dependência da África do trigo da Rússia e Ucrânia. Entre os países africanos, 25 importam mais de um terço do seu trigo da Rússia e da Ucrânia, e 15 importam mais da metade dos seus suprimentos desses países. (Fonte: Conferência da ONU sobre Comércio e Desenvolvimento - @UNCTAD/Twitter)

Os perigos são particularmente intensos no Egito, o maior comprador mundial de trigo e o maior importador de trigo da Rússia e da Ucrânia, responsável por 80% do total das importações. Cerca de 30 milhões das 104 milhões de pessoas do Egito vivem com menos de US$1,50 (R$7,11) por dia e mais de 70 milhões dependem de importações subsidiadas pelo governo para ter pão e óleo vegetal.

O governo egípcio proibiu a exportação de trigo, farinha e outros produtos básicos, o que precipitará um forte aumento nos preços e impactará países como o Iêmen, já enfrentando a maior crise humanitária do mundo. No ano passado, o presidente Abdel Fatteh el-Sisi anunciou que aumentaria os preços do pão subsidiado. Com os subsídios de pão do Egito já custando US$ 3,2 bilhões por ano, o ministério das Finanças estima que irá precisar gastar mais US$ 763 milhões em 2021-22.

Em julho passado, o governo reduziu os subsídios para óleo de girassol e soja em 20%, e óleo vegetal não misturado em 23,5%. Nesta semana, o primeiro ministro Moustafa Madbouly fixou o preço do pão não subsidiado em 11,5 libras egípcias, um aumento de 25%, ao mesmo tempo em que a moeda sofreu uma queda de 14% em relação ao dólar com a guerra na Ucrânia.

A Líbia, dependente da Ucrânia para mais de 40% das suas importações de trigo, teve aumentos de até 30% no preço do trigo e da farinha. Segundo o PMA, mesmo antes da invasão russa da Ucrânia, 12% dos líbios, ou 511 mil pessoas, precisariam de assistência alimentar em 2022. Há também 635.051 migrantes, requerentes de asilo e refugiados na Líbia, um quarto dos quais são considerados em situação de insegurança alimentar moderada ou severa. Esses terríveis números mostram a devastação causada pela guerra da OTAN em 2011 contra o que era um país de renda média.

O Sudão do Sul, destruído pela guerra civil e pelos conflitos entre grupos rivais pelo controle dos recursos de petróleo do país desde a independência em 2011, enfrenta a fome, com a expectativa de que 8,9 milhões da sua população de 12 milhões ‒ incluindo 680 mil pessoas afetadas pelas enchentes desde maio de 2021 ‒ estejam em situação de fome na próxima estação seca.

Na Etiópia, os confrontos na província de Tigré e arredores no norte do país já deslocaram mais de 2 milhões de pessoas. A maioria dos quatro milhões de tigreanos restantes não possuem alimentos suficientes e estão sobrevivendo reduzindo as refeições, vendendo colheitas para pagar dívidas ou pedindo dinheiro. Há 454 mil crianças subnutridas, mais de um quarto com subnutrição severa, e 120 mil mulheres grávidas ou lactantes desnutridas. A situação tem sido agravada pela incapacidade da ONU de conseguir levar alimentos emergenciais para o Tigré desde meados de dezembro.

De acordo com o PMA, 44 milhões de pessoas no mundo inteiro estão à beira da fome e outros 232 milhões estão à um passo disso. O PMA foi muito atingido porque recebia da Ucrânia metade do trigo que distribui em crises humanitárias. Ele deve recorrer a outros fornecedores a um custo maior em meio ao enorme aumento da demanda de países destruídos por guerras e conflitos como Afeganistão, Síria, Iêmen, Etiópia e Sudão, mesmo enquanto os recursos fornecidos pelos países avançados diminuem à medida que os recursos são desviados para a Ucrânia.

Os líderes e analistas do mundo sabem que a expansão da fome vai alimentar a instabilidade social, a migração e a agitação política, assim como o aumento do custo de vida precipitou a primavera árabe em 2011. No ano passado, houve cinco golpes de Estado na África Ocidental. Apenas 22% dos 1,2 bilhão de pessoas do continente foram vacinadas contra a COVID-19, enquanto US$100 bilhões em auxílio para lidar com a pandemia prometidos pelos países avançados ainda não foram entregues. Cerca de 20 países estão enormemente endividados e perto da inadimplência de empréstimos internacionais.

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