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Perspectivas

A imagem de Sagitário A*: Uma enorme conquista científica

Publicado originalmente em 13 de maio de 2022

Na quinta-feira, a colaboração Event Horizon Telescope (EHT) publicou a imagem do buraco negro supermassivo, Sagitário A* (Sgr A*), no centro de nossa galáxia, a Via Láctea. Ela é a detecção direta de um dos tipos de objetos astronômicos mais difíceis de detectar e o produto de mais de um século de estudos teóricos e experimentais da astronomia. Os resultados também são uma brilhante demonstração das possibilidades criadas pelo trabalho humano coordenado sobre bases internacionais e científicas.

Mais de 300 astrônomos e centenas de engenheiros e pessoal de apoio de 60 instituições em 20 países e regiões nos sete continentes fizeram as observações, processaram os dados e mantiveram a infraestrutura técnica necessária para esse grande esforço. Após as observações do Sgr A* terem sido feitas em 2017, milhares de terabytes de dados foram transportados para o Observatório Haystack no MIT e para o Instituto Max Planck para serem processados e analisados em poderosos supercomputadores. Cinco anos de trabalho foram necessários para caracterizar e compreender os resultados.

Imagens de raio-X e infravermelho dos telescópios da NASA, Chandra e Hubble, respectivamente, foram utilizados para criar essa imagem do núcleo galáctico para complementar e expandir as imagens produzidas pela Event Horizon Telescope (EHT) do buraco negro central supermassivo. Crédito: NASA/CXC/SAO, NASA/HST/STScl, Event Horizon Telescope Collaboration

O resultado imediato é o produto de mais de duas décadas de planejamento pela colaboração, que foi lançada em 2009 com o objetivo principal de observar os dois maiores buracos negros no céu vistos da Terra, o Sgr A* e o buraco negro no centro da galáxia Messier 87. Para isso, a colaboração incorporou radiotelescópios de todo o mundo e combinou suas capacidades de observação para detectar objetos celestes nunca antes vistos diretamente.

Os telescópios envolvidos na captura dos dados necessários para produzir a imagem final incluem as seguintes redes de radiotelescópios: o Grande Conjunto Milimétrico do Atacama (ALMA) e o Atacama Pathfinder Experiment no Chile, o Telescópio Submilimétrico Heinrich Hertz no estado do Arizona, EUA, o Telescópio IRAM 30m na Espanha, o Telescópio James Clerk Maxwell e o Conjunto Submilimétrico no estado do Havaí, EUA, o Grande Telescópio Milimétrico no México e o Telescópio do Pólo Sul na Antártida.

A imagem produzida também é uma enorme resposta à todas as formas de pensamento irracionalistas, seja o misticismo do obscurantismo religioso ou o pós-modernismo e sua afirmação de que todas as “narrativas” são igualmente válidas. De fato, existe uma realidade objetiva, material, que é regida por leis físicas, possíveis de serem conhecidas.

Outros resultados mais profundos são esperados nos próximos meses e anos. Em março, a EHT concluiu a sua última campanha de observação até o momento, tendo incluído três novos telescópios que permitem uma imagem ainda melhor. Agora que os dados sobre os dois principais alvos da colaboração foram coletados e divulgados, ela irá explorar outras regiões inexploradas do universo, particularmente os jatos energéticos em escala galáctica produzidos por buracos negros supermassivos conforme grandes quantidades de gás e poeira fluem para dentro deles.

Como em qualquer descoberta científica, a própria rede de telescópios EHT é o produto de mais de um século de trabalho pioneiro em astrofísica teórica e engenharia avançada. A teoria da relatividade geral de Einstein, na qual se baseia a compreensão moderna dos buracos negros, foi desenvolvida em 1915. A detecção inicial de ondas de rádio do núcleo galáctico aconteceu na década de 1930 e as técnicas da astronomia necessárias para detectar a espiral de matéria caindo nos buracos negros foram desenvolvidas na década de 1960. Foi somente nos anos 1980 que se criou a hipótese pela primeira vez de que Sgr A* seria um buraco negro, e observações nos anos 1990 e 2000 descartaram a maioria das outras possibilidades.

Ao mesmo tempo, a produção de tais imagens é um processo inerentemente internacional. Para alcançar a resolução necessária para ver o buraco negro (na realidade o gás extremamente quente que envolve o objeto invisível), os radiotelescópios precisam ser construídos e mantidos em extremos opostos do globo, transformando efetivamente a própria Terra em uma antena de rádio gigante, capaz de detectar sinais muito fracos.

Empreendimentos científicos vastos como esse estão se tornando cada vez mais rotineiros. O Large Hadron Collider (LHC), a detecção de ondas gravitacionais, o experimento IceCube para detectar neutrinos, assim como praticamente todas as missões espaciais, exigem um esforço internacional para terem sucesso. Um exemplo pelo lado negativo foi a missão ExoMars da Agência Espacial Européia, que estava com seu lançamento programado para este ano. Porém, após a Rússia retirar sua participação na missão, ela não será lançada até pelo menos 2028. A saída foi resultado das sanções impostas ao país após ter sido provocado pelos EUA e pela OTAN a entrar em guerra com a Ucrânia.

A necessidade da colaboração internacional foi apontada por Xavier Barcons, diretor geral do Observatório Europeu do Sul (ESO), que disse durante uma coletiva de imprensa para anunciar as descobertas: “Esse resultado extraordinário não teria sido possível de ser alcançado por uma única instalação ou mesmo pela comunidade nacional de astronomia de um único país. Foram necessários oito observatórios de rádio ao redor do mundo, e essa rede já se expandiu para 11 hoje, muitos deles construídos, financiados, operados e apoiados através de organizações internacionais em muitos países ao redor do mundo”.

Barcons então observou que a descoberta “mostra o que podemos alcançar quando cooperamos, quando trabalhamos juntos. Isso é muito importante para lembrar os tempos em que vivemos, em que o mundo não está indo nessa direção, infelizmente”.

Pode-se supor que Barcons estava se referindo à escalada do conflito entre a OTAN e a Rússia, que ameaça a aniquilação nuclear da humanidade. Ou talvez à pandemia de COVID-19, que matou cerca de 20 milhões de pessoas em todo o mundo e onde países ricos acumularam vacinas e outros tratamentos.

Barcons também poderia estar se referindo à catástrofe climática contínua e acelerada, que os governos mundiais nada fizeram para impedir e que ameaça submergir as costas marítimas do mundo até o final do século. Apesar das advertências por mais de meio século do desastre iminente, os países têm se recusado consistentemente a reduzir as emissões dos gases do efeito estufa em nome de seus interesses capitalistas nacionais.

Essa situação é o produto de relações sociais e políticas definidas e processos econômicos objetivos. É a divisão do mundo em estados nacionais rivais competindo em um mercado capitalista global que produz tais horrores, sem mencionar a esmagadora desigualdade e pobreza enfrentadas por bilhões de pessoas todos os dias.

A colaboração científica séria envolve um certo esforço consciente de rejeição dos mantras chauvinistas e nacionalistas lançados por todos os governos, governos que prefeririam muito mais ver os cientistas envolvidos produzindo armas de destruição em massa cada vez mais terríveis do que trabalhando juntos para entender a natureza e o nosso lugar dentro dela.

Esses mesmos governos supervisionaram uma enorme redistribuição da riqueza durante a pandemia, entregando trilhões de dólares a Wall Street e outros mercados financeiros, enquanto forçaram os trabalhadores a retornar ao trabalho em meio a uma pandemia para pagar os resgates. A guerra na Ucrânia produziu escassez de produtos de primeira necessidade, alimentos e fórmula infantil, enquanto a inflação disparou, colocando cada vez mais a população mundial na miséria.

Porém, as grandes conquistas científicas, como a imagem de Sagitário A*, dão um vislumbre de outra base de organização social. Se os princípios de planejamento científico e colaboração internacional que levaram a esse triunfo fossem aplicados à sociedade contemporânea, seria possível acabar com a guerra, a pobreza, as doenças evitáveis e todas as outras formas de sofrimento social.

A classe capitalista provou que está comprometida apenas com a contínua acumulação de lucros privados, não importando as conseqüências para a ecologia da Terra ou o custo em vidas humanas. Assim, cabe à classe trabalhadora, a força social objetivamente revolucionária e internacional da sociedade, derrubar o capitalismo como um todo, abrindo caminho para uma ordem social nova e mais elevada, o socialismo.

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