Português

A Herança que Defendemos: Prefácio à edição de 2018

Estamos publicando o prefácio à edição de 2018 de A Herança que Defendemos: Uma Contribuição para a História da Quarta Internacional, de David North. O livro, publicado em forma de polêmica em 1988, remonta à luta do Comitê Internacional da Quarta Internacional (CIQI) e da Workers League, a antecessora do Partido Socialista pela Igualdade (PSI) dos EUA, entre 1982 e 1986 para defender o trotskismo contra o oportunismo nacionalista da então seção britânica do CIQI, o Workers Revolutionary Party, liderado na época por Michel Banda e Cliff Slaughter.

David North, então secretário nacional da Workers League, é hoje presidente nacional do PSI (EUA) e presidente do Conselho Editorial do WSWS.

***

Capa do livro A Herança que Defendemos, de David North

O livro A Herança que Defendemos foi publicado há 30 anos, em 1988, após a deserção do Workers Revolutionary Party (WRP – Partido Revolucionário dos Trabalhadores) do Reino Unido, do Comitê Internacional da Quarta Internacional (CIQI). Como o Comitê Internacional provou posteriormente em numerosos documentos, a traição do WRP foi o resultado de seu afastamento, durante um período de mais de uma década, dos princípios trotskistas que um dia defendeu da mais importante maneira. [1] O WRP, fundado em 1973, foi a organização sucessora do movimento trotskista britânico que, em 1953, havia formado o Comitê Internacional junto com o Socialist Workers Party (SWP – Partido Socialista dos Trabalhadores) e o francês Parti Communiste Internationaliste (PCI – Partido Comunista Internacionalista). Gerry Healy (1913-1989), líder do WRP, havia assinado a histórica Carta Aberta aos Trotskistas de Todo o Mundo, escrita por James P. Cannon (1890-1974) e que denunciou o revisionismo de Michel Pablo e Ernest Mandel do programa da Quarta Internacional. A Carta Aberta, publicada em novembro de 1953, articulou os princípios de fundação do CIQI:

  1. A agonia mortal do sistema capitalista ameaça destruir a civilização tornando cada vez piores as crises, guerras mundiais e manifestações de barbárie, como o fascismo. O desenvolvimento das armas atômicas, hoje, enfatiza o perigo da forma mais grave possível.
  2. A queda ao abismo só pode ser evitada substituindo o capitalismo pela economia planificada do socialismo em escala mundial, retomando, assim, a espiral de progresso aberta pelo capitalismo no seu início.
  3. Isso só pode ser realizado sob a liderança da classe trabalhadora, a única e verdadeira classe revolucionária na sociedade. Mas a própria classe trabalhadora enfrenta uma crise em sua direção, apesar de a correlação mundial entre as forças sociais não ter sido nunca tão favorável como hoje para os trabalhadores se lançarem no caminho do poder.
  4. Para organizar-se a fim de cumprir essa tarefa histórica mundial, a classe trabalhadora em cada país deve construir um partido socialista revolucionário seguindo o modelo desenvolvido por Lenin; isto é, um partido combativo capaz de combinar dialeticamente democracia e centralismo – democracia para tomar decisões, centralismo para levá-las a cabo; uma direção controlada pela base, uma base capaz de avançar, sob o fogo, de maneira disciplinada.
  5. O principal obstáculo a isso é o stalinismo, que atrai os trabalhadores explorando o prestígio da Revolução de Outubro de 1917 na Rússia, para mais tarde, traindo sua confiança, arremessá-los nos braços da socialdemocracia, na apatia, ou de volta às ilusões do capitalismo. Essa traição é paga pela classe trabalhadora sob a forma de consolidação das forças fascistas e monarquistas, bem como da deflagração de novas guerras criadas e preparadas pelo capitalismo. Desde o seu início, a Quarta Internacional coloca como uma das suas principais tarefas a derrubada revolucionária do stalinismo dentro e fora da URSS.
  6. A necessidade de táticas flexíveis para as muitas seções da Quarta Internacional e partidos ou grupos simpáticos ao seu programa torna ainda mais imperativo que eles saibam combater o imperialismo e todas as suas agências pequeno-burguesas (como os grupos nacionalistas ou as burocracias sindicais) sem capitular ao stalinismo; e, por outro lado, que saibam combater o stalinismo (que, em última análise, é uma agência pequeno-burguesa do imperialismo) sem capitular ao imperialismo. [2]

A Carta Aberta resumiu concisamente as concepções estratégicas do trotskismo que haviam sido repudiadas por Pablo e Mandel. O pablismo substituiu a caracterização do stalinismo como contrarrevolucionário, feita pelo movimento trotskista, por uma teoria que atribuía à burocracia do Kremlin e suas agências um papel historicamente progressista e revolucionário. Em vez de trabalhar pela derrubada dos regimes stalinistas em uma série de revoluções políticas, os pablistas vislumbraram um processo de autorreforma burocrática, em que os trotskistas atuariam como conselheiros dos líderes stalinistas, incitando-os a um rumo mais à esquerda. Os “Estados operários deformados” do Leste Europeu, governados pelos agentes stalinistas locais do regime do Kremlin, estavam destinados, segundo Pablo e Mandel, a durar séculos.

James Cannon autor da Carta Aberta

Por mais que pareça surpreendente à luz de tudo o que ocorreu nos últimos 30 anos, esta atitude apologética em relação ao stalinismo continuou sendo a perspectiva das organizações pablistas até o colapso dos regimes burocráticos do Leste Europeu e a dissolução da União Soviética entre os anos de 1989 e 1991. A defesa do Comitê Internacional da herança programática da Quarta Internacional – acima de tudo, sua insistência no papel contrarrevolucionário do stalinismo – foi ridicularizada por seus opositores pablistas como “sectarismo”. No entanto, pouco mais de um ano após a publicação de A Herança que Defendemos, a análise histórica, as concepções teóricas e o programa defendido neste livro seriam confirmados pelos eventos políticos que estouraram em todo o Leste Europeu e dentro da própria URSS.

A capitulação dos pablistas ao stalinismo foi apenas um aspecto de seu abandono da teoria da revolução permanente de Trotsky. Eles rejeitaram a luta pela consciência marxista na classe trabalhadora e o estabelecimento da independência política da classe trabalhadora em relação a todas as agências nacionais burguesas e pequeno-burguesas do imperialismo.

Apesar do papel central que os trotskistas britânicos desempenharam na defesa da Quarta Internacional nos anos 1950 e 1960 – especialmente na oposição à ruptura do SWP americano com o Comitê Internacional e à reunificação com os pablistas em 1963 – sua própria tendência ao revisionismo tornou-se cada vez mais evidente nos anos 1970, particularmente após a fundação do Workers Revolutionary Party, em novembro de 1973. No início dos anos 1960, os trotskistas britânicos da Socialist Labour League (SLL – Liga Socialista dos Trabalhadores, a antecessora do WRP) haviam submetido a glorificação do nacionalismo radical de Fidel Castro promovida pelo SWP a uma crítica fulminante, rejeitando a alegação de que o exército de guerrilha pequeno-burguês do líder cubano havia demonstrado um caminho para o socialismo sem a necessidade da construção de um partido trotskista baseado e enraizado na classe trabalhadora.

No entanto, em meados dos anos 1970, o WRP começou a exagerar o programa anti-imperialista dos movimentos nacionais burgueses no Oriente Médio – como a Organização para a Libertação da Palestina (OLP) e o regime nacionalista radical de Muammar Gaddafi da Líbia – de uma forma muito parecida com as políticas antitrotskistas dos pablistas. A guinada do WRP ao pablismo não foi meramente o produto dos erros pessoais dos líderes individuais. Sob condições nas quais o movimento operário organizado em todo o mundo ainda era dominado pelos partidos e sindicatos stalinistas e socialdemocratas, as organizações trotskistas estavam vulneráveis à pressão social e ideológica exercida pela radicalização em massa de amplos setores da pequena-burguesia, especialmente da juventude estudantil, durante os anos 1960 e início dos anos 1970.

O desafio de recrutar membros da pequena-burguesia ao movimento trotskista exigiu não apenas uma firme orientação política e prática para a classe trabalhadora, baseada em uma luta incessante contra as burocracias stalinistas e socialdemocratas. Também exigiu uma crítica teórica persistente das muitas formas de pseudomarxismo promovidas pelos pablistas – especialmente a “Escola de Frankfurt” (ou seja, Horkheimer, Adorno, Benjamin, Bloch, Reich e Marcuse), o “marxismo ocidental” (como Gramsci), os “capitalistas de Estado” antitrotskistas e os teóricos da “Nova classe” (Lefort, Castoriadis e Djilas), além, é claro, das inúmeras formas de nacionalismo radical (castrismo, guevarismo, os escritos de Fanon e os discursos de Malcolm X), para citar apenas as formas mais célebres do pensamento e da política radical pequeno-burguesa. A essa longa lista podemos também acrescentar a influência do maoísmo, uma variante do stalinismo muito reacionária, abraçada por inúmeros intelectuais pequeno-burgueses, que levou trabalhadores e jovens de todo o mundo a uma série de derrotas sangrentas.

As políticas oportunistas do WRP encontraram oposição dentro do Comitê Internacional. Entre 1982 e 1984, a Workers League, a organização trotskista americana, desenvolveu uma crítica abrangente das políticas neopablistas do WRP. Os principais líderes do WRP – incluindo Healy, Michael Banda (1930-2014) e Cliff Slaughter (1928-2020) – reprimiram os esforços da Workers League para organizar uma discussão de suas críticas dentro do Comitê Internacional. [3] Esses esforços sem princípios levaram a uma crise política no WRP no outono de 1985. Ainda determinados a evitar uma discussão sobre as questões teóricas e políticas subjacentes ao racha do WRP, Slaughter e Banda tentaram culpar o Comitê Internacional pelo caminho oportunista que a seção britânica havia seguido durante a década anterior.

Em fevereiro de 1986, o WRP publicou um documento anunciando a sua ruptura com o trotskismo. Escrito por Michael Banda, foi intitulado 27 Razões Pelas Quais o Comitê Internacional Deve Ser Enterrado e a Quarta Internacional Construída. O WRP lançou esse documento com grande alarde, prevendo que ocuparia um lugar entre os clássicos do marxismo. Na realidade, o documento de Banda era um amálgama de distorções, mentiras e meias-verdades, cujo objetivo era desacreditar não só o Comitê Internacional, mas também toda a história da Quarta Internacional. O próprio título do ensaio de Banda expôs sua desonestidade política. Se apenas uma parte de suas 27 Razões fosse sustentável, seria impossível justificar a continuidade da Quarta Internacional. Seguindo as conclusões que brotaram inexoravelmente de seus próprios argumentos, Banda – menos de um ano após completar seu documento – publicou uma vil denúncia de Trotsky e declarou sua admiração ilimitada por Stalin. Banda chegou ao ponto de proclamar que o estabelecimento do socialismo na União Soviética era irreversível: “Devemos, portanto, dizer categórica e enfaticamente que a história decidiu o caráter da URSS e que a URSS é uma sociedade em transição ao socialismo”. [4] A evolução política de Banda antecipou o repúdio do trotskismo por todos os líderes e membros do WRP que haviam endossado o seu documento. Um número significativo aderiu ao movimento stalinista. Outros passaram para o campo imperialista e se tornaram participantes ativos na guerra da OTAN contra a Sérvia. O maior grupo, encorajado por Cliff Slaughter, repudiou todo o legado da concepção de Lenin e Trotsky do partido revolucionário, abandonou a luta pelo socialismo e se concentrou em tornar suas vidas pessoais as mais confortáveis possíveis.

Michael Banda, autor de 27 Razões Pelas Quais o Comitê Internacional Deve Ser Enterrado e a Quarta Internacional Construída

A partir do momento em que recebeu o documento de Banda, o Comitê Internacional compreendeu a necessidade de uma resposta detalhada. Fui encarregado dessa tarefa. Ao longo de dois meses, as partes semanais de A Herança que Defendemos começaram a aparecer nos jornais publicados pelas seções do Comitê Internacional. Eu não esperava que a resposta a Banda exigisse um livro de mais de 500 páginas. Entretanto, ao estudar o documento de Banda, percebi que ele estava procurando aproveitar o fato de que a história da Quarta Internacional – especialmente dos anos críticos entre o assassinato de Trotsky em 1940 e o racha de 1953 com os pablistas – nunca foi adequadamente pesquisada e era em grande parte desconhecida do quadro existente do movimento trotskista. Não foi suficiente denunciar a traição de Banda. Foi necessário rever a história da Quarta Internacional e, com base nisso, educar o quadro do Comitê Internacional.

Três décadas após a sua publicação, acredito que A Herança tem resistido ao teste do tempo. Embora mantendo um valor contemporâneo significativo como introdução à história da Quarta Internacional, A Herança também examina problemas relacionados à teoria, programa e estratégia marxista que permanecem altamente relevantes à luta atual para construir o Partido Mundial da Revolução Socialista.

A Herança que Defendemos é o único registro da história da Quarta Internacional que emprega o método do materialismo histórico para explicar o surgimento de tendências políticas e a luta entre elas. Rejeitando a abordagem subjetiva (como o ataque de Banda) que parte das características dos líderes individuais, bons ou maus, e seus motivos, nobres ou infames, A Herança procura identificar os processos sociais e políticos objetivos – surgindo das contradições do capitalismo mundial e do desenvolvimento global e nacional da luta de classes durante e após a Segunda Guerra Mundial imperialista – que subjazem os conflitos dentro da Quarta Internacional. Essa história enfatiza de forma central não as intenções subjetivamente concebidas pelos principais atores políticos – Cannon, Pablo, Mandel e Healy – mas sim as verdadeiras forças motrizes objetivas da luta de classes, as quais, para emprestar as palavras de Engels, “nas mentes das massas em ação e de seus líderes – os chamados grandes homens – se refletem em razões conscientes...”. [5]

A Herança analisa, no contexto da complexa e rápida mudança das condições da Guerra Mundial e suas consequências, os conflitos no âmbito da Quarta Internacional que anteciparam a luta que se desenvolveu após o Terceiro Congresso Mundial de 1951 e culminou com o racha em novembro de 1953. O livro chama a atenção para duas tendências revisionistas que surgiram nos anos 1940, que refletiam o giro à direita na orientação política de grandes setores da intelligentsia radical pequeno-burguesa.

Os conflitos que se desenvolveram na década de 1940 são mais bem compreendidos como a continuação da luta entre frações de 1939-40 dentro do Socialist Workers Party. A luta liderada por Trotsky no último ano de sua vida contra a “oposição pequeno-burguesa” de James Burnham (1905-1987), Max Shachtman (1904-1972) e Martin Abern (1898-1949) foi tão intensa que tem sido geralmente tratada como um episódio distinto e isolado na história da Quarta Internacional. Essa luta começou em setembro de 1939 com o início da Segunda Guerra Mundial e continuou até abril de 1940. A minoria rompeu com o SWP e formou o Workers Party (Partido dos Trabalhadores). Um mês depois, James Burnham, que havia sido o principal teórico da minoria, deixou o Workers Party e anunciou seu repúdio ao marxismo e ao socialismo.

A contribuição de Trotsky para a luta dentro do Socialist Workers Party está entre os seus maiores escritos. Embora cercado pelas paredes de uma vila sitiada em Coyoacán, constantemente ameaçado por assassinos da GPU, sua visão política não foi prejudicada. O “Velho” viu mais longe no futuro do que todos os seus contemporâneos.

A questão política central que dominou a luta entre frações dizia respeito à “questão russa”, ou seja, a natureza de classe da União Soviética. Shachtman argumentou que, após o Pacto de Não-Agressão entre Stalin e Hitler no final de agosto de 1939, seguido pela dupla invasão nazi-stalinista da Polônia, a União Soviética não poderia mais ser definida como um Estado operário. A burocracia soviética, alegou, havia se tornado uma classe dominante no topo de uma nova forma de sociedade exploradora.

Trotsky se opôs à redefinição da União Soviética feita por Shachtman baseada na aliança reacionária com a Alemanha nazista. A assinatura do Pacto de Não-Agressão foi certamente um ato de traição indescritível. Mas, insistiu Trotsky, o “caráter social da URSS não é determinado por sua amizade com a democracia ou o fascismo”. [6] Ele chamou atenção para a questão subjacente de perspectiva histórica envolvida na luta sobre a definição correta da União Soviética:

A questão da URSS não pode ser abstraída, como algo à parte, do processo histórico de nosso tempo em seu conjunto. Ou o Estado de Stalin é uma formação transitória, é uma deformação de um Estado operário em um país atrasado e isolado, ou o “coletivismo burocrático” (...) é uma nova formação social que está substituindo o capitalismo em todo o mundo (stalinismo, fascismo, New Deal, etc.). As tentativas terminológicas – Estado operário ou Estado não operário; classe ou não classe; etc. – só adquirem sentido a partir dessa perspectiva histórica. Quem escolher a segunda alternativa admite, abertamente ou não, que todas as potencialidades revolucionárias do proletariado mundial estão esgotadas, que o movimento socialista está falido e que o velho capitalismo está se transformando em “coletivismo burocrático” com uma nova classe exploradora.

A enorme importância de tal conclusão é, por si só, evidente. Diz respeito a todo o destino do proletariado mundial e da humanidade. [7]

Trotsky reconheceu que a classe trabalhadora dos países imperialistas avançados ainda não havia conseguido construir um partido revolucionário à altura das tarefas de uma época de crise capitalista sem precedentes. Mas o exemplo do bolchevismo e da Revolução de Outubro demonstrou que a criação de tal partido era possível. Portanto, a grande questão histórica, argumentou Trotsky, “é a seguinte”:

Será que a necessidade histórica objetiva a longo prazo traçará um caminho para si mesma na consciência da vanguarda da classe trabalhadora; isto é, no processo desta guerra e dos choques profundos que ela deve gerar, formar-se-á uma verdadeira direção revolucionária capaz de conduzir o proletariado à conquista do poder?

A Quarta Internacional responde a essa questão afirmativamente, não só por meio do texto de seu programa, mas também por sua própria existência. Todos os tipos de representantes desiludidos e atemorizados do pseudomarxismo atuam, pelo contrário, baseados na suposição de que a falência da direção apenas “reflete” a incapacidade do proletariado de levar a cabo sua missão revolucionária. Nem todos os nossos opositores expressam claramente este pensamento, mas todos eles – ultraesquerdistas, centristas, anarquistas, para não mencionar os stalinistas e os socialdemocratas – descarregam sua responsabilidade pelas derrotas nas costas do proletariado. Nenhum deles assinala precisamente as condições em que o proletariado será capaz de levar a cabo a virada socialista.

Se admitirmos como verdade que a causa das derrotas reside nas qualidades sociais do próprio proletariado, então a situação da sociedade moderna deverá ser considerada como desesperadora. [8]

Trotsky identificou o pessimismo histórico e político que movia Shachtman e Burnham. A caracterização de Trotsky da fração de Shachtman-Burnham como “pequeno-burguesa” não foi um mero epíteto. A minoria deu expressão política aos pontos de vista de uma grande parte da intelligentsia da classe média que foi politicamente desmoralizada pelas derrotas dos anos 1930 e moralmente assolada pelo ceticismo. Ironicamente, na véspera do início da luta entre frações no SWP, Burnham e Shachtman tinham sido coautores de um ensaio, publicado na edição de janeiro de 1939 do The New International, que forneceu um retrato mordaz dos “Intelectuais em Retirada”:

Todo o período de reação após uma derrota revolucionária produz uma variedade de doutrinas superficiais e transitórias “novas” e “arrojadas”, que dispensam o marxismo considerando-o “ultrapassado”. Seria instrutivo comparar a história das “lutas entre frações” ocorrida após a derrota da Revolução Russa de 1905 com as suas análogas da última década ou mais. São os presentes humores reacionários – de depressão, desânimo, perda de confiança no poder de recuperação do proletariado e em seu movimento revolucionário – que são racionalizados nos ataques generalizados contra o marxismo revolucionário. Os intelectuais radicais, pela própria natureza de sua posição social, são geralmente os primeiros a ceder a esses humores, a capitular em vez de resistir a eles deliberadamente. Em um grau totalmente diferente, com certeza, eles são tanto vítimas de nosso prolongado período de reação quanto a degeneração stalinista da Revolução Russa e a ascensão temporária do fascismo são os seus produtos.

A principal doença intelectual da qual esses intelectuais sofrem pode ser chamada de stalinofobia, ou anti-stalinismo vulgar. A doença foi super induzida pela repulsa universal ao macabro sistema de armações e expurgos de Stalin. E a consequência é que, desde então, a maioria dos escritos sobre o assunto tem resultado mais de um choque mental do que de uma análise social fria e, onde há análise, ela é mais moral do que científica ou política. [9]

É razoável supor que Burnham e Shachtman tenham descrito com tanta precisão a “doença intelectual” que a intelligentsia estava sofrendo, pois eles próprios já estavam sentindo seus sintomas. Antes do fim do ano, a doença que os acometia havia progredido para o seu estágio terminal.

Uma das características marcantes da variante antitrotskista do revisionismo surgida na luta de 1939-40 foi o seu total repúdio aos fundamentos filosóficos, ao caráter de classe, ao programa político e à perspectiva histórica do marxismo. Esse revisionismo não foi orientado a reformar a luta revolucionária pelo socialismo, mas a rejeitar o seu próprio objetivo. Ao desenvolver suas críticas ao “trotskismo ortodoxo”, concluiu que não havia nenhum elemento do marxismo com o qual estivesse de acordo.

James Burnham

Naturalmente, os diferentes indivíduos da minoria chegaram a essa conclusão em diferentes momentos. Mas a trajetória essencial de direita da oposição de Burnham-Shachtman foi claramente declarada na carta de demissão de Burnham, de 21 de maio de 1940, do Workers Party. Esse documento tem sido geralmente considerado nada mais do que embaraçoso para Shachtman, que foi desertado de forma repentina e sem cerimônia por seu aliado político mais próximo. Mas, vista num contexto histórico e político mais amplo, a carta de Burnham definia e antecipava não apenas a evolução política de Max Shachtman após sua ruptura com a Quarta Internacional, mas também de todas as outras tendências oposicionistas que emergiriam dentro da Quarta Internacional e do Socialist Workers Party durante os anos 1940. Burnham declarou:

Das convicções mais importantes, que têm sido associadas ao movimento marxista, seja na variante reformista, leninista, stalinista ou trotskista, não há praticamente nenhuma que eu aceite na sua forma tradicional. Considero essas convicções falsas ou obsoletas ou sem sentido; ou, em alguns casos, verdadeiras apenas num aspecto tão restrito e modificado que já não pode mais ser chamada de marxista. (…)

Não só acho que não faz sentido dizer que “o socialismo é inevitável” e falso que o socialismo “é a única alternativa ao capitalismo”; considero que, com base nas evidências agora disponíveis, uma nova forma de sociedade exploradora (que eu chamo de “sociedade gerencial”) não só é possível como alternativa ao capitalismo, mas é um resultado mais provável do presente período do que o socialismo. (…)

Discordo completamente, como Cannon entendeu por muito tempo, da concepção leninista de partido – não apenas das modificações de Stalin ou Cannon dessa concepção, mas da concepção de Lenin e Trotsky. (…)

À luz de tais convicções, e de outras semelhantes, é evidente que devo rejeitar uma parte considerável dos documentos programáticos do movimento da Quarta Internacional (adotado pelo Workers Party). O documento do “programa de transição” parece-me – como aconteceu quando foi apresentado pela primeira vez – mais ou menos sem sentido, e um exemplo-chave da incapacidade do marxismo, mesmo nas mãos de seu mais brilhante representante intelectual, de lidar com a história contemporânea. [10]

Burnham, finalmente, reconheceu que suas posições políticas não eram alheias ao tipo de desmoralização pessoal que ele e Shachtman haviam descrito em Intelectuais em Retirada:

Serei o último a defender que uma pessoa seja tão arrogante a ponto de achar que sabe claramente os motivos e os impulsos de suas próprias ações. Toda essa carta pode ser uma forma exagerada de dizer uma única frase: “Tenho vontade de deixar a política.” Sem dúvidas, sou influenciado pelas derrotas e traições dos últimos vinte e tantos anos. Elas compõem as provas da minha convicção de que o marxismo deve ser rejeitado: em cada um dos muitos testes fornecidos pela história, os movimentos marxistas ou falharam com o socialismo ou o traíram. E eles influenciam também meus sentimentos e atitudes, eu sei disso. [11]

A última frase foi certamente uma racionalização notável para a própria traição de Burnham. Ao invés de participar de um futuro fracasso ou traição ao socialismo, Burnham decidiu realizar sua deserção pessoal preventiva do movimento revolucionário. Após deixar o Workers Party, Burnham se moveu rapidamente para a extrema direita da política burguesa anticomunista. Após a Segunda Guerra Mundial, ele se tornou um estrategista do imperialismo americano, apelando para uma “Federação Mundial” dominada pelos Estados Unidos para combater a União Soviética e o comunismo. Nos anos 1950, ele colaborou com o arquirreacionário William F. Buckley Jr. na fundação da National Review. Reconhecido como um grande líder intelectual dos neoconservadores nos Estados Unidos, Burnham recebeu a Medalha da Liberdade do Presidente Ronald Reagan em 1983.

O repúdio de Burnham ao marxismo antecipou o caminho a ser tomado não apenas pelos shachtmanistas, mas também pelas outras tendências oposicionistas que surgiram dentro do SWP e da Quarta Internacional durante os anos 1940. Tomando emprestado e emendando uma frase bem conhecida cunhada por Trotsky, pode-se dizer que, embora nem todo ex-trotskista pequeno-burguês desmoralizado seja um Burnham, há um pouco de Burnham em todo renegado desmoralizado do trotskismo. [12]

A primeira e mais significativa dessas tendências foi o grupo das “Três Teses” (também conhecido como os “Retrogressistas”), que surgiu da Internationale Kommunisten Deutschlands (IKD). Essa organização de trotskistas alemães emigrados foi liderada por Joseph Weber (1901-1959). Antes da publicação de A Herança, seu papel crítico no desenvolvimento das concepções antitrotskistas dentro da Quarta Internacional havia sido mais ou menos esquecido. Não é possível compreender as origens e posições da oposição de Morrow-Goldman, que surgiu um pouco mais tarde, sem referência aos documentos escritos por Weber. A política da IKD é examinada no capítulo 8 deste livro. Mas, dados os esforços recentes (aos quais me referirei em breve) para promover Felix Morrow (1906-1988) e Albert Goldman (1897-1960) como profetas cujo martírio político nas mãos de Cannon levou ao fracasso do trotskismo, é necessário fornecer um resumo conciso da perspectiva desmoralizada, derrotista e antimarxista da IKD.

A IKD publicou uma declaração em outubro de 1941 que rejeitava a perspectiva da revolução socialista mundial por considerá-la um delírio político. As vitórias do fascismo na Europa significavam que a classe trabalhadora havia sido jogada de volta às condições pré-1848. O mundo moderno, insistiu, não estava avançando para o socialismo, mas regressando para a barbárie. Essa regressão não era a consequência temporária de derrotas políticas, que poderiam ser revertidas por um novo surto de lutas revolucionárias da classe trabalhadora, lideradas por um partido marxista. A regressão, ao contrário, deveria ser entendida como um processo inevitável. A vitória militar dos nazistas, que a IKD acreditava ser irreversível, marcava uma nova etapa da história mundial.

As prisões, os novos guetos, o trabalho forçado, os campos de concentração e até mesmo de prisioneiros de guerra não são apenas estabelecimentos político-militares de transição, são também formas de uma nova exploração econômica que acompanham o desenvolvimento rumo a um Estado escravo moderno e que são concebidas como destino permanente de uma porcentagem considerável da humanidade. [13]

O grupo das “Três Teses” concluiu que a luta pelo socialismo havia sido, num processo de retrocesso histórico, superada pela “busca da liberdade nacional”. [14] Em um documento posterior, escrito em 1943 e publicado em outubro de 1944 na The New International (cooptada pela minoria shachtmanista após o racha de 1940), a IKD rejeitou explicitamente a análise histórica da época imperialista que Lenin havia desenvolvido na luta contra a traição da Segunda Internacional e na qual se baseava a estratégia do Partido Bolchevique em 1917. O documento afirmou:

Se olharmos para a Primeira Guerra Mundial e a totalidade da constelação na época, devemos reconhecer que a Primeira Guerra Mundial, apesar de todas as conexões causais que levaram à sua eclosão, não foi mais do que um infortúnio histórico do capitalismo, um evento acidental que encenou o colapso do capitalismo dentro do quadro da necessidade histórica mais cedo do que historicamente necessário. [15]

Mas se a Guerra Mundial foi um acidente, também foram o colapso da Segunda Internacional, a vitória da Revolução de Outubro e a fundação da Internacional Comunista. Todo o fundamento objetivo da estratégia marxista revolucionária no século XX, tal como formulado por Lenin e Trotsky, foi efetivamente negado.

A IKD formulou seu pessimismo político nos mais duros termos. A classe trabalhadora, declarou, estava liquidada como força revolucionária. Foi “desmembrada, atomizada, dividida, contraposta em seus vários segmentos, desmoralizada politicamente, isolada e controlada internacionalmente...”. [16] Embora o capitalismo estivesse apodrecendo, a classe trabalhadora era incapaz de derrubá-lo. A IKD afirmou que o “erro mais comum” do movimento trotskista, que surgiu de “um completo equívoco do marxismo”, consistiu em “conceber a negação do capitalismo apenas como tarefa da revolução proletária...”. Diante da impotência da classe trabalhadora como força revolucionária, declarou a IKD, a única opção política era voltar à “centenária” luta pela democracia. [17] A IKD se opôs ao apelo da Quarta Internacional para os Estados Socialistas Unidos da Europa:

Antes que a Europa possa se unir em “Estados socialistas”, deve antes separar-se novamente em Estados independentes e autônomos. É exclusivamente uma questão de os povos divididos, escravizados e espoliados e o proletariado se constituírem novamente como uma nação...

Podemos formular a tarefa da seguinte maneira: reconstruir todo o desenvolvimento que foi paralisado, recuperar todas as conquistas da burguesia (incluindo o movimento operário), atingir o máximo do progresso e superá-lo. (…)

Entretanto, o problema político mais premente é o problema centenário da primavera do capitalismo industrial e do socialismo científico – conquista da liberdade política, estabelecimento da democracia (também para a Rússia), como condição prévia indispensável para a libertação nacional e a fundação do movimento operário. [18]

A IKD insistiu que o seu chamado para retornar o calendário político à era pré-1848, abandonar a luta pelo socialismo internacional e retomar a luta pela soberania nacional e pela democracia burguesa fosse aplicado a todos os países.

Com as devidas modificações, esse problema [da democracia e da libertação nacional] existe para todo o mundo; para a China e Índia, Japão e África, Austrália e Canadá, Rússia e Inglaterra. Em uma palavra, para toda a Europa, América do Norte e do Sul. Em nenhum lugar existe um país que não tenha uma questão democrática e nacional poderosamente intensificada, em nenhum lugar existe um movimento operário politicamente organizado. [19]

A palavra de ordem central que tinha que ser adotada, a IKD proclamou, era “libertação nacional”.

Com isso, queremos dizer: a questão nacional é um daqueles capítulos históricos que se tornam necessariamente o ponto de transição estratégico para a reconstituição do movimento operário e da revolução socialista. Quem não entende esse capítulo historicamente necessário e não sabe como utilizá-lo, não conhece e não entende nada do marxismo-leninismo. [20]

Na verdade, era a IKD que estava repudiando o programa de Lenin e Trotsky. A separação da luta por reivindicações democráticas da luta para derrubar o capitalismo significava o abandono da teoria e do programa da revolução permanente. Em países com um desenvolvimento burguês atrasado, a teoria da revolução permanente, explicou Trotsky, “significa que a solução verdadeira e completa de suas tarefas democráticas e de emancipação nacional só é concebível através da ditadura do proletariado, que assume a direção da nação oprimida e sobretudo de suas massas camponesas”. [21]

Ao separar as demandas democráticas das socialistas nos países menos desenvolvidos, os esforços da IKD para ressuscitar um programa burguês de libertação nacional nos centros avançados do capitalismo mundial, e rejeitar como inoportuna a luta pelo socialismo, demonstraram um nível patológico de desmoralização política. Colaboradores e amigos de Joseph Weber, o líder da IKD, lembraram mais tarde que ele expressou frequentemente a opinião, em meados dos anos 1940, de que o domínio nazista sobre a Europa continuaria por pelo menos 30, se não 50, anos. [22]

Os shachtmanistas acolheram e promoveram a posição da IKD. Os argumentos da IKD, que rejeitaram a Revolução de Outubro como sendo prematura, eram inteiramente compatíveis com a sua rejeição da definição da União Soviética como um Estado operário e a defesa da URSS contra o imperialismo.

A perspectiva desmoralizada da IKD – que se separaria da Quarta Internacional – eventualmente encontrou apoio dentro do Socialist Workers Party através da tendência de Morrow-Goldman, que surgiu como um grupo de oposição distinto dentro do SWP em 1944. Antes da publicação de A Herança, essa tendência cada vez mais à direita havia sido apresentada falsamente como uma alternativa clarividente à suposta resposta dogmática, equivocada e irrealista de Cannon à situação política no final da Guerra Mundial. Seus dois principais líderes haviam desempenhado papéis significativos na Quarta Internacional e no partido americano. Albert Goldman foi advogado de Trotsky, representando-o na Comissão Dewey em 1937. No julgamento da Lei Smith de 1941, Goldman defendeu os membros do SWP acusados de sedição. Ele estava entre os réus e foi um dos 18 membros do partido considerados culpados e enviados para a prisão. Felix Morrow era membro do Comitê Político do SWP e um notável jornalista socialista, mais conhecido por seu livro Revolução e Contrarrevolução na Espanha. Ele também estava entre os membros do partido condenados à prisão no final do julgamento de 1941. Outro membro importante da fração de Morrow-Goldman foi Jean Van Heijenoort (1912-1986), que havia sido secretário político de Trotsky durante os anos 1930 e secretário de fato da Quarta Internacional durante a Segunda Guerra Mundial.

A Herança que Defendemos revê em detalhes as posições da tendência de Morrow-Goldman. Entretanto, desde a publicação do livro, a disponibilidade de boletins internos de discussão do SWP, aos quais não tive acesso em 1986-87, possibilitou uma apreciação mais completa da extensão da influência da IKD sobre a tendência de Morrow-Goldman. Em 1942, Morrow, Goldman e Van Heijenoort (escrevendo como Marc Loris) tinham se oposto aos argumentos defendidos na resolução das “Três Teses”. Mas, no final de 1943, suas posições haviam passado por uma mudança radical. No decorrer da luta política dentro do SWP e da Quarta Internacional que se desenvolveu nos três anos seguintes, Morrow argumentou que a adesão da Quarta Internacional ao programa da revolução socialista na Europa a tornava politicamente irrelevante nas condições que existiam no final da Segunda Guerra Mundial. Interpretando os acontecimentos na Europa – especialmente na França e na Itália – da maneira mais conservadora e derrotista, a fração de Morrow-Goldman insistiu que simplesmente não havia possibilidade de uma revolução socialista. A Quarta Internacional, alegou, não tinha opção política viável a não ser converter-se em um movimento de reformas democráticas burguesas, aliado à socialdemocracia e aos vários movimentos burgueses de tendência democrática.

Enquanto defenderam a transformação da Quarta Internacional em um apêndice da democracia burguesa, Morrow, Goldman e Van Heijenoort também repudiaram a defesa da URSS por parte do SWP. Já em março de 1943, Morrow havia escrito: “Grandes massas em todo o mundo estão se regozijando com as vitórias do Exército Vermelho. Não dispondo de uma teoria bem desenvolvida, mas ainda assim com uma lealdade basicamente de classe, elas entendem que as vitórias soviéticas também são suas vitórias. Estão definitivamente conscientes de uma distinção entre o Estado operário e seus ‘aliados’ capitalistas”. [23] Mas, com uma velocidade de tirar o fôlego característica daqueles que rompem com o trotskismo e se movem à direita, Morrow girou para a visão absolutamente oposta. Em 1946, ele denunciou a insistência do SWP de que a vitória do Exército Soviético sobre os nazistas contribuíra para a radicalização política das massas europeias, e argumentou: “Todas as razões que demos para defender a União Soviética desapareceram”. [24]

A tendência de Morrow-Goldman exigiu a reunificação política com os shachtmanistas, cuja rejeição anterior da defesa da União Soviética estava evoluindo rapidamente para o apoio direto à luta do imperialismo americano contra o “totalitarismo comunista”. A Quarta Internacional e o SWP rejeitaram enérgica e corretamente a perspectiva desmoralizada de Morrow e Goldman.

A avaliação dos argumentos sobre uma “linha correta” em relação aos acontecimentos na Europa não foi meramente uma questão de discurso intelectual abstrato. Em uma situação altamente fluida e instável, em que o resultado da crise política do pós-guerra estava sendo colocado em dúvida, os trotskistas tentavam expressar ao máximo o potencial revolucionário da situação. Baseavam seu trabalho no potencial que existia objetivamente para a derrubada do capitalismo, não em suposições a priori de que a reestabilização capitalista era inevitável. No momento mais grave que antecedeu a ascensão de Hitler ao poder, perguntaram a Trotsky se a situação era “sem esperança”. Essa palavra, respondeu, não estava no vocabulário dos revolucionários. “A luta”, declarou Trotsky, “decidirá”. A mesma resposta deveria ser dada àqueles que afirmaram, em meio à desordem e ao caos da Europa do pós-guerra, que a causa revolucionária era sem esperança e que a estabilização do capitalismo era inevitável. Se tivessem concedido a derrota antecipadamente, como defenderam Morrow e Goldman, os trotskistas teriam se tornado um dos fatores a favor da reestabilização capitalista.

De qualquer forma, a análise de Morrow sobre a situação objetiva que existiu na Europa e internacionalmente durante as etapas finais e logo após a Segunda Guerra Mundial subestimou enormemente a profundidade e a extensão da crise que o capitalismo mundial enfrentava. O fato indiscutível de que o capitalismo europeu acabou se estabilizando, após a introdução do Plano Marshall em 1947, não invalida a perspectiva defendida pela Quarta Internacional após a Guerra Mundial. Com a burguesia de grande parte da Europa Ocidental e Central em um estado de prostração política, totalmente desacreditada por suas atrocidades fascistas, o potencial para a conquista do poder pela classe trabalhadora superou aquele que havia se apresentado no fim da Primeira Guerra Mundial. O problema não era a ausência de uma situação “objetivamente” revolucionária. Era evidente para todos os astuciosos estrategistas burgueses que o humor das massas era extremamente radical. Dean Acheson, que viria a se tornar secretário de Estado dos EUA, descreveu a crise como “de certa forma mais extraordinária do que a descrita no primeiro capítulo do Gênesis”. [25] Em um memorando ao assistente especial do Presidente Roosevelt, Harry Hopkins, em dezembro de 1944, Acheson alertou sobre um iminente banho de sangue em toda a Europa. “Os povos dos países libertados”, escreveu, “são o material mais inflamável do mundo... São violentos e inquietos”. A menos que se encontrasse meios para estabilizar a Europa, a escalada de “agitação e distúrbios” levaria à “derrubada dos governos”. [26]

Em um livro recentemente publicado sobre as origens do Plano Marshall e da Guerra Fria, o historiador Benn Steil escreveu:

As pessoas também queriam mudanças políticas. Os partidos comunistas em toda a Europa estavam prometendo uma alternativa radical ao capitalismo. A história parecia estar do lado deles. A União Soviética foi vitoriosa na guerra, e era agora, de longe, o país mais poderoso do continente. Os comunistas receberam 19% dos votos na Itália, 24% na Finlândia (onde o comunista Mauno Pekkala tornou-se primeiro-ministro) e 26% na França em 1945-46. E embora não houvesse eleições nacionais na Alemanha (Ocidental) antes de 1949, os comunistas conquistaram 14% em algumas eleições regionais. Somados aos socialistas, o total de votos para a esquerda foi de 39% na Itália e 47% na França. Na Itália, muitos pensavam que a esquerda revolucionária estava destinada a tomar o controle do país. A fusão dos partidos de esquerda na zona soviética da Alemanha parecia um modelo para a Europa mais ampla. [27]

O fator decisivo para conter a classe trabalhadora, suprimir os poderosos impulsos insurrecionais e proporcionar ao imperialismo americano e às aterrorizadas elites europeias o tempo necessário para salvar o regime capitalista foi, acima de tudo, a direção dos partidos stalinistas. Na Itália, o papel do líder stalinista Palmiro Togliatti era crítico. Como diz um estudo recente do período:

A confiança da liderança stalinista de que o PCI [Partido Comunista Italiano] exerceria uma influência moderadora e evitaria ações espontâneas não foi descabida. Dada essa situação turbulenta e até mesmo explosiva, é mérito de Togliatti que as incitações revolucionárias que surgiram regularmente no partido durante o período de resistência foram em grande parte contidas. Seu papel em evitar uma guerra civil imediatamente após a libertação do norte da Itália não deve ser subestimado. O fato de que o impulso revolucionário, que continuou se manifestando dentro do partido durante a Resistência, tenha sido refreado se deveu em grande parte aos próprios esforços de Togliatti. [28]

O historiador Paul Ginsborg forneceu um relato vívido da oposição de Togliatti às exigências da base do PCI para uma derrubada socialista revolucionária do Estado burguês:

Na sua chegada a Salerno, Togliatti delineou para seus camaradas, em meio a um certo espanto e alguma oposição, a estratégia que ele pretendia que o partido seguisse num futuro próximo. Os comunistas, disse, deveriam suspender sua hostilidade frequentemente expressa à monarquia. Ao invés disso, eles deveriam persuadir todas as forças antifascistas a se unirem ao governo real, que agora controlava toda a Itália ao sul de Salerno. Juntar-se ao governo, argumentou Togliatti, seria o primeiro passo para a realização do objetivo primordial do período – a unidade nacional diante dos nazistas e fascistas. O principal objetivo dos comunistas deveria ser a libertação da Itália, não uma revolução socialista. Togliatti tornou isso explícito nas instruções que escreveu para o partido em junho de 1944: “Lembre-se sempre que a insurreição que queremos não tem o objetivo de impor transformações sociais e políticas no sentido socialista ou comunista. Seu objetivo é antes a libertação nacional e a destruição do fascismo. Todos os outros problemas serão resolvidos pelo povo amanhã, quando a Itália for libertada, por meio do voto popular livre e da eleição de uma Assembleia Constituinte.”

Esta última frase revelou o compromisso de Togliatti com o restabelecimento da democracia parlamentar na Itália. Ao contrário de Tito, ele não tinha a intenção de fazer da ditadura do proletariado o objetivo de curto prazo de seu partido. Nem era seu objetivo a simples restauração de um regime parlamentar nas linhas pré-fascistas. [29]

Na França, o Partido Comunista e os sindicatos controlados pela CGT liderada pelos stalinistas desempenharam um papel não menos contrarrevolucionário. Reconhecendo que o Partido Comunista tinha poder suficiente, se quisesse, para ameaçar a derrubada do sistema capitalista, os diplomatas americanos monitoraram de perto suas atividades. Os stalinistas fizeram o jogo dos Estados Unidos:

Os líderes da CGT e os comunistas individuais cultivaram relações com autoridades americanas de 1945 a 1947, de acordo com a estratégia do partido comunista de dissuasão internacional e colaboração política interna. Os dirigentes comunistas da CGT forneceram informações abundantes aos americanos, a maior parte delas tranquilizadoras. (...) a CGT não buscou uma transição imediata para o socialismo e apoiou os objetivos limitados do Conselho Nacional da Resistência. A CGT era a defensora das pequenas empresas, a batalha por maior produtividade continuava sendo a base da política comunista, e nenhuma greve ocorreria em fábricas ou portos “controlados pelo nosso pessoal”. [30]

No contexto da situação explosiva na Europa, intensificada pela onda crescente de lutas anti-imperialistas que varreram praticamente todas as antigas colônias, a insistência de Morrow para que a Quarta Internacional limitasse seu programa e agitação às demandas democráticas não teria servido a nenhum outro propósito a não ser o de dar apoio trotskista à traição dos stalinistas ao movimento revolucionário da classe trabalhadora e de facilitar a reestabilização do capitalismo.

Em um ensaio de 2014 publicado na revista Science and Society, intitulado Estratégia e tática no período revolucionário: o trotskismo norte-americano e a revolução europeia, 1943-1946”, os historiadores Daniel Gaido e Velia Luparello apresentam uma defesa total da tendência de Morrow-Goldman. O título do ensaio é controverso, pois a premissa essencial do argumento de Morrow, endossado por Gaido e Luparello, é que não existia uma situação revolucionária. Eles citam com aprovação a demanda de Morrow de que o SWP e a Quarta Internacional deveriam se livrar “de todos os traços de uma concepção da situação atual como ‘objetivamente revolucionária’”. [31] O relato tendencioso que fornecem do debate dentro da Quarta Internacional endossa a perspectiva antimarxista e desmoralizada de Morrow:

De fato, afirmava Morrow, “a revolução não é uma função objetiva do processo social”, e a situação na Europa não era de nenhuma maneira comparável à situação do rescaldo da Primeira Guerra Mundial. “Não estamos repetindo 1917-1923”, advertia Morrow.

A situação de 1945 estava “muito mais atrasada”, porque, diante da ausência de um ponto de convergência das massas revolucionárias como o da Revolução Russa e da Terceira Internacional, o desenvolvimento dos partidos revolucionários era muito mais lento. [32]

Mas de onde surgiram a Revolução Bolchevique e a Terceira Internacional? Lenin e Trotsky travaram ao longo de 1917 uma luta incessante contra os mencheviques e aqueles elementos do Partido Bolchevique que afirmavam que a situação não era revolucionária e que não era possível ir além dos limites de um programa democrático burguês. Os bolcheviques lutaram para expressar plenamente o potencial revolucionário apresentado na situação objetiva. Gaido e Luparello não tomam nota do sofisma paralisante e autocontraditório por trás do derrotismo de Morrow: a luta pela revolução socialista era impossível porque a situação não era objetivamente revolucionária. Mas a situação não era revolucionária porque não havia um “ponto de convergência” para a ação revolucionária.

Do ponto de vista teórico, há pouca novidade nos argumentos avançados por Gaido e Luparello. Eles seguem, em grande parte, a crítica essencialmente socialdemocrata ao trotskismo, promovida em dois ensaios publicados há quatro décadas: o ensaio de 1975 de Geoff Hodgson, intitulado Trotsky and Fatalistic Marxism (Trotsky e o marxismo fatalista), e o artigo de 1977 de Peter Jenkins, intitulado Where Trotskyism Got Lost: World War II and the Prospect for Revolution in Europe (Onde o Trotskismo se Perdeu: a Segunda Guerra Mundial e a Perspectiva da Revolução na Europa). Hodgson – parecendo-se muito com Eduard Bernstein – afirmou que a concepção de Trotsky – de uma época de incessante convulsão econômica, ruptura do sistema burguês de Estado-nação, guerras interimperialistas e revolução socialista – era fundamentalmente falsa. Trotsky legou à Quarta Internacional uma ênfase exagerada e irrealista da crise. Morrow, escreveu Hodgson, desafiou essa falsa perspectiva: “Como resultado, Morrow e outros foram expulsos do SWP”. [33]

Depois de Hodgson, Jenkins elogiou Morrow por ter desafiado o “catastrofismo revolucionário” da Quarta Internacional, e por desenvolver uma crítica precoce de “uma tendência consistente por parte do movimento trotskista de subestimar a viabilidade da democracia burguesa na Europa, e a força das ideias reformistas entre a classe trabalhadora”. [34] O trotskismo, concluiu Jenkins, “se perdeu” porque não conseguiu se converter em um movimento reformista socialdemocrata.

Felix Morrow

Gaido e Luparello chegaram essencialmente à mesma conclusão, argumentando que a derrota de Morrow e Goldman “encerrou qualquer análise séria das consequências da política seguida pela direção do SWP e pelo secretariado europeu da Quarta Internacional, política que serviria para reduzir o trotskismo a uma força impotente durante a maior parte do século.” [35] O que exatamente Gaido e Luparello querem dizer com “força impotente”? No contexto da sua argumentação, isso só pode significar que o movimento trotskista deveria ter adotado a identidade e o programa políticos de uma organização reformista socialdemocrata. Deveria ter contornado a “força impotente”, adquirindo influência dentro da estrutura do parlamentarismo burguês. O Partido Mundial da Revolução Socialista de Trotsky deveria ter sido convertido em partidos nacionais de reformismo socialdemocrata.

Em 1940, ao analisar os argumentos da minoria, Trotsky observou: “Shachtman deixou de fora uma coisa trivial: sua posição de classe”. [36] A mesma “coisa trivial” desapareceu no ensaio de Gaido e Luparello. Completamente ausente está qualquer consideração sobre a natureza real da classe – isto é, a trajetória sócio-política objetiva – da tendência Morrow-Goldman. O ensaio nunca aborda a questão essencial: em nome de quais interesses de classe Morrow e Goldman falavam? Essa é uma omissão lamentável, especialmente para o professor Gaido, que está engajado há muitos anos em um sério trabalho acadêmico sobre a história do movimento marxista. Esse acadêmico geralmente consciente inclui em seu ensaio apenas uma referência superficial às “Três Teses” de Joseph Weber e da IKD, e não chama atenção para sua influência crítica sobre Felix Morrow. Ainda mais indefensável é a atitude superficial de Gaido em relação à evolução política de Morrow, Goldman e Van Heijenoort.

Todos os principais representantes da tendência de Morrow-Goldman deixaram o movimento trotskista, abandonaram a política socialista e passaram bruscamente para a política de direita. Claramente, essa evolução se desenvolveu logicamente a partir das posições que haviam avançado na luta dentro do partido. Todos eles seguiram, mais ou menos, a trajetória de James Burnham. Van Heijenoort abandonou a Quarta Internacional, denunciou a União Soviética como um “Estado escravo”, terminou seu envolvimento pessoal na política socialista e tornou-se um notável matemático. Goldman deixou o SWP, uniu-se brevemente ao movimento liderado por Shachtman e, logo depois, repudiou o marxismo. Depois de ter sido expulso do SWP em 1946, abandonou a política socialista, apoiou a Guerra Fria do imperialismo americano e tornou-se um rico editor de literatura ocultista.

Em novembro de 1976, enquanto conduzia pesquisas em nome do Comitê Internacional relacionadas ao assassinato de Leon Trotsky, encontrei-me com Felix Morrow. Ele tinha então 71 anos de idade e vivia em um subúrbio de Nova York. Recordando a luta partidária de 1943-46, Morrow reconheceu que, de todas as diferenças políticas entre eles, Cannon estava certo sobre um ponto crítico. Morrow não acreditava mais na possibilidade de uma revolução socialista. Morrow lembrou que em seu discurso final aos membros do SWP, antes de sua expulsão, declarou que nunca conseguiria se dissociar do partido. No entanto, depois de deixar a sala de reuniões, Morrow sabia que uma etapa de sua vida havia terminado e que nunca mais voltaria a ser ativo na política socialista. Ele se sentiu quase como se nunca tivesse sido membro do movimento trotskista. Perguntei a Morrow se ele tinha algum arrependimento sobre o passado. Apenas um, ele respondeu: “Eu deveria ter negociado o recebimento dos direitos autorais do meu livro, Revolução e Contrarrevolução na Espanha”.

Quanto a Max Shachtman, ele se tornou, nos anos 1950, conselheiro da virulenta burocracia sindical anticomunista da AFL-CIO. Nos anos 1960, Shachtman apoiou a invasão de Cuba pela CIA em 1961 e, mais tarde, a intervenção dos EUA no Vietnã.

A evolução política de Shachtman, Morrow, Goldman e Van Heijenoort fez parte de um processo social mais amplo, já que o clima da Guerra Fria, a reestabilização econômica da Europa do pós-guerra e a asfixia burocrática do movimento revolucionário da classe trabalhadora afetaram o panorama político da intelligentsia de esquerda e pequeno-burguesa. O marxismo deu lugar ao existencialismo. O foco anterior nos processos sociais foi substituído por uma fixação nos problemas pessoais. A avaliação científica dos eventos políticos foi abandonada em favor de uma interpretação do ponto de vista da psicologia. As concepções do futuro, baseadas no potencial do planejamento econômico, deram lugar ao devaneio utópico. O interesse pela exploração econômica da classe trabalhadora diminuiu. A preocupação com os problemas ecológicos – separados das questões da dominação de classe e do sistema econômico – passou a se destacar.

A evolução do líder da IKD é ilustrativa do processo socialmente determinado de “retrocesso” intelectual. A IKD cortou sua relação com a Quarta Internacional, contra a qual Joseph Weber escreveu com enorme desprezo. Em carta datada de 11 de outubro de 1946, Weber afirmou: “A Quarta Internacional está morta, e, inclusive, nunca existiu”. Ele afirmou que ela havia sido construída sobre uma base falsa, e seus documentos eram lidos como se fossem destinados a “analfabetos políticos”. [37] Weber logo rompeu inteiramente com a política marxista, denunciou a União Soviética como uma sociedade capitalista de Estado e acabou se tornando o profeta de uma utopia ecológica semianarquista. Entre seus principais discípulos estava um ex-membro do Socialist Workers Party, Murray Bookchin (1921-2006), que, em 1971, dedicou seu livro, Post-Scarcity Anarchism (Anarquismo Pós-Escassez), a Joseph Weber. Bookchin, que havia se tornado um adversário implacável do marxismo, agradeceu a seu mentor por ter “formulado há mais de 20 anos os contornos do projeto utópico desenvolvido neste livro”. [38] Os escritos de Bookchin chegaram ao conhecimento de Abdullah Öcalan, o líder do nacionalista burguês Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK), após sua captura e prisão pelo governo turco em 1999. Öcalan encontrou, nos escritos de Bookchin, ideias compatíveis com suas próprias propostas para o “confederalismo democrático”. Com a morte de Bookchin, o PKK o honrou como “um dos maiores cientistas sociais do século XX”. [39]

A política é regida pela lógica dos interesses de classe. Essa é uma verdade fundamental frequentemente esquecida, especialmente pelos acadêmicos, que tendem a avaliar as tendências das facções políticas com base em critérios subjetivos. Além disso, seus julgamentos são influenciados por seus próprios preconceitos políticos não declarados, particularmente quando se trata de avaliar uma disputa entre oportunistas e revolucionários. Para o acadêmico pequeno-burguês, as políticas defendidas pelos oportunistas geralmente parecem mais “realistas” do que as avançadas pelos revolucionários. Mas, assim como não há uma filosofia inocente, não há uma política inocente. Prevendo-as ou não, um programa político tem consequências objetivas. A Quarta Internacional e o SWP reconheceram corretamente, nos anos 1940, que o programa defendido pela IKD – de uma libertação nacional supra-histórica e de uma democracia universal – expressava interesses de classe alheios e hostis ao socialismo.

Na conclusão de seu ensaio, Gaido e Luparello escreveram que “a crise da Quarta Internacional não começou, como muitas vezes argumentado, com a controvérsia desencadeada pelas táticas de ‘entrismo profundo’ de Michel Pablo em 1953, mas dez anos antes, devido à incapacidade da liderança do SWP de adaptar suas táticas à nova situação que se desenvolvia na Europa como resultado da queda de Mussolini em 1943...”. [40] A essência desse argumento é que o movimento trotskista deveria ter se liquidado na década de 1940. Seus esforços mal concebidos para sustentar um programa revolucionário irrealista o condenaram à “impotência política”, e foi a fonte de crises posteriores na Quarta Internacional. O objetivo da nova narrativa proposta por Gaido e Luparello é transferir a responsabilidade pelas crises da Quarta Internacional daqueles que procuraram liquidar o movimento trotskista para os ombros dos que procuraram defendê-lo.

Para seu grande crédito político, James P. Cannon defendeu a perspectiva revolucionária mundial do trotskismo contra a tendência de Morrow-Goldman, que – seguindo o caminho da capitulação de Burnham e Shachtman – defendeu a “democracia” sob a égide do imperialismo americano. Após a luta contra esses capituladores, a Quarta Internacional foi confrontada com outra forma, não menos perigosa e insidiosamente persistente de revisionismo antitrotskista, associada ao programa e às táticas avançadas no final dos anos 1940 e início dos anos 1950 por Michel Pablo e Ernest Mandel.

Independentemente das diferenças de programa e orientação, houve um elo significativo nas concepções históricas básicas das duas principais formas de revisionismo (Burnham-Shachtman e Pablo-Mandel) que surgiram na Quarta Internacional entre 1940 e 1953. Dentro do contexto social e político internacional dos anos 1940 e 1950, a concepção política essencial que ligou os shachtmanistas (e seus seguidores no grupo das “Três Teses” e na tendência de Morrow-Goldman) ao surgimento um pouco mais tardio do revisionismo pablista foi a rejeição do potencial revolucionário da classe trabalhadora. As formas específicas dessa rejeição eram diferentes. Shachtman e Burnham especularam que a União Soviética representava uma nova forma de sociedade “coletivista”, controlada por uma elite burocrática que estava em processo de se tornar, ou já se tornara, uma nova classe dominante. Uma variante da teoria de Shachtman era que a União Soviética era uma forma de “capitalismo de Estado”. O grupo das “Três Teses”, seguido pela tendência Morrow-Goldman, chegou à conclusão de que a revolução socialista era uma causa historicamente perdida.

O revisionismo de Pablo e Mandel, que surgiu no final dos anos 1940, camuflou o seu abandono do trotskismo com uma retórica superficialmente esquerdista. Mas, em sua perspectiva, a principal força no estabelecimento do socialismo era a burocracia stalinista, não a classe trabalhadora. A teoria de Pablo foi uma inversão peculiar da teoria de Shachtman. Enquanto os shachtmanistas denunciavam o regime stalinista como o progenitor de uma nova forma de exploração da sociedade “burocrática coletivista”, a tendência pablista proclamava os regimes burocráticos stalinistas estabelecidos no Leste Europeu após a Segunda Guerra Mundial como a forma necessária da transição histórica do capitalismo para o socialismo.

O pessimismo – alguém poderia até descrevê-lo como desespero – por trás do revisionismo de Pablo encontrou expressão consumada em sua teoria da “guerra-revolução”, desenvolvida antes do Terceiro Congresso Mundial de 1951. “Para nosso movimento”, declarou o documento pablista, “a realidade social objetiva consiste essencialmente no regime capitalista e no mundo stalinista”. A luta pelo socialismo assumiria a forma de uma guerra entre esses dois campos, da qual o sistema stalinista sairia vitorioso. Erguendo-se sobre as cinzas de uma guerra termonuclear, os stalinistas estabeleceriam “Estados operários deformados” – similares aos já existentes no Leste Europeu – que durariam séculos. Nesse cenário bizarro, não haveria um papel independente para a classe trabalhadora ou para a Quarta Internacional. Seus quadros foram instruídos a entrar nos partidos stalinistas e atuar dentro deles como um grupo de pressão à esquerda. Essa perspectiva stalinista não se limitava à entrada nos partidos stalinistas. Como explicado no capítulo 15 deste livro:

A adaptação ao stalinismo foi um elemento central da nova perspectiva pablista, mas seria um erro considerar essa a sua característica essencial. O pablismo, foi (e é) o liquidacionismo total, ou seja, a negação da hegemonia do proletariado na revolução socialista e da existência verdadeiramente independente da Quarta Internacional enquanto expressão consciente do papel histórico da classe trabalhadora. A teoria da guerra-revolução forneceu o contexto inicial para a elaboração da tese central do liquidacionismo: que todos os partidos trotskistas devem se dissolver em quaisquer tendências políticas que dominem o movimento operário ou popular de massas nos países onde as seções da Quarta Internacional atuam.

O racha ocorrido em novembro de 1953 está entre os eventos mais críticos da história do movimento socialista. Nada menos que a sobrevivência do movimento trotskista – ou seja, a expressão consciente e politicamente organizada de toda a herança da luta pelo socialismo – estava em jogo. No momento mais crítico da história da Quarta Internacional, a Carta Aberta de Cannon reafirmou claramente os princípios fundacionais do trotskismo, extraídos das lições estratégicas das revoluções e contrarrevoluções do século XX. A liquidação da Quarta Internacional teria significado o fim de uma oposição marxista politicamente organizada ao imperialismo e às suas agências políticas nos partidos e organizações stalinistas, socialdemocratas e nacionalistas burgueses. Essa não é uma hipótese especulativa. É um fato histórico, que pode ser verificado examinando as consequências desastrosas do pablismo em muitos países, em praticamente todos os continentes, onde suas políticas liquidacionistas foram implementadas.

Com relação ao destino da União Soviética, é preciso lembrar que os líderes pablistas aderiram à teoria da autorreforma burocrática até o fim do regime stalinista. Enquanto o Comitê Internacional alertava, já em 1986, que a chegada de Mikhail Gorbachev ao poder, e a implementação da perestroika, marcavam a preparação final para a restauração do capitalismo na União Soviética, os pablistas saudavam suas políticas reacionárias como um avanço decisivo em direção ao socialismo. Ernest Mandel descreveu Gorbachev em 1988 como “um líder político notável”. Desprezando como sendo “absurdas” as advertências de que as políticas de Gorbachev estavam levando à restauração do capitalismo, declarou Mandel: “O stalinismo e o brezhnevismo estão definitivamente no fim. O povo soviético, o proletariado internacional e toda a humanidade podem dar um grande suspiro de alívio”. [41]

Aprendiz do Mandel, o britânico pablista Tariq Ali, expressou de maneira ainda mais irrestrita o seu entusiasmo às políticas do regime de Gorbachev. Em seu livro Revolution From Above: Where is the Soviet Union Going? (A Revolução de Cima: Aonde Vai a União Soviética?), publicado em 1988, Ali combinou várias características do pablismo: apoio ilimitado à burocracia stalinista, grotesco oportunismo político e uma total incapacidade de compreender a realidade política. Em seu prefácio, Ali resumiu a tese do livro:

A Revolução de Cima argumenta que Gorbachev representa uma corrente progressista e reformista dentro da elite soviética, cujo programa, se bem-sucedido, representaria um enorme ganho para os socialistas e democratas em escala mundial. A escala da operação de Gorbachev é, de fato, uma reminiscência dos esforços de um presidente americano do século XIX: Abraham Lincoln. [42]

Aparentemente preocupado com o fato de sua elevação de Gorbachev à altura política de Abraham Lincoln não ter expressado suficientemente a medida completa de sua própria devoção ao stalinismo, Tariq Ali dedicou humildemente seu volume a “Boris Yeltsin, um membro líder do Partido Comunista da União Soviética, cuja coragem política fez dele um símbolo importante em todo o país”. [43]

O apoio incondicional dos líderes pablistas aos dois arquitetos centrais da destruição final da União Soviética – Mikhail Gorbachev e Boris Yeltsin – proporcionou uma confirmação histórica irrefutável do caráter reacionário do pablismo e da legitimidade da luta, ao longo de décadas, travada pelo Comitê Internacional contra essa perniciosa agência política pequeno-burguesa do imperialismo.

***

Desde a publicação de A Herança que Defendemos em 1988, o mundo tem testemunhado profundas mudanças econômicas, tecnológicas e sociais, para não mencionar os explosivos desenvolvimentos políticos. A dissolução da União Soviética não trouxe uma nova era de paz, muito menos o “fim da história”, como prometido no apogeu do triunfalismo imperialista pós-soviético. Afirmar que o mundo está em “crise” é um eufemismo. O “caos” é uma descrição mais apropriada. Os últimos 25 anos foram marcados por uma guerra interminável. Porções cada vez maiores do globo estão sendo arrastadas para o turbilhão do conflito geopolítico imperialista. Os Estados Unidos, frustrados em sua expectativa de que governaria o mundo depois de 1991, são obrigados a intensificar, com cada vez maior imprudência, suas operações militares. Mas os próprios fundamentos da ordem mundial imperialista, tal como ela surgiu da catástrofe da Segunda Guerra Mundial, estão desmoronando. Mesmo no meio da intensificação dos conflitos de Washington com a Rússia e a China, as relações políticas entre os Estados Unidos e seus principais “parceiros” imperialistas, especialmente a Alemanha, estão se deteriorando rapidamente.

Na frente econômica, o sistema capitalista cambaleia de crise em crise. Os efeitos do crash econômico de 2008 não foram superados. O principal legado do crash tem sido a intensificação da desigualdade social, que atingiu níveis insustentáveis dentro da estrutura da democracia. A espantosa concentração de riqueza dentro de uma pequena elite é um fenômeno global que está por trás da crescente instabilidade política dos governos burgueses. O conflito de classes está em ascensão em todas as partes do mundo. A globalização da produção capitalista e das transações financeiras está levando a classe trabalhadora internacional para uma luta comum.

As condições objetivas estão fornecendo o impulso para uma imensa expansão da luta de classes revolucionária. Mas esses impulsos objetivos devem ser traduzidos em ações politicamente conscientes. E isso levanta a importantíssima questão da direção da classe trabalhadora.

Apesar da imensa crise do sistema capitalista global e da desordem política geral nos níveis mais altos da burguesia, os esforços da classe trabalhadora para encontrar um caminho para o progresso continuam bloqueados pelos partidos e organizações que empregam sua influência para conter e desorientar seu movimento. E, ainda assim, as experiências das duas últimas décadas deixaram sua marca na consciência das massas. A falência dos partidos “socialistas” oficiais é amplamente reconhecida. Mas à medida que as massas se voltam para novas organizações que prometem uma abordagem mais radical dos problemas sociais, como o Syriza na Grécia, o vazio de suas promessas é rapidamente exposto. Levou apenas alguns meses para que o Syriza, tendo sido levada ao poder em uma onda de protestos populares contra a União Europeia, repudiasse cada promessa que fizera a seus apoiadores. Se o Podemos na Espanha, Corbyn no Reino Unido ou Sanders nos Estados Unidos tivessem chegado ao poder, o resultado não seria diferente.

A resolução da crise da direção revolucionária continua sendo a tarefa histórica central que a classe trabalhadora enfrenta. Essa imensa tarefa só pode ser empreendida por um partido internacional que tenha assimilado toda a experiência histórica da Quarta Internacional, que agora se estende por 80 anos. Somente o Comitê Internacional da Quarta Internacional é capaz de fornecer um balanço politicamente coerente e consistente de toda a sua história. Sua prática está enraizada na defesa consciente da herança teórica e política da luta de Leon Trotsky pela Revolução Socialista Mundial. Espero que a republicação de A Herança que Defendemos contribua para a educação revolucionária de uma nova geração de trabalhadores e jovens, radicalizada pela crise objetiva do capitalismo, na história, no programa e nas tradições da Quarta Internacional.

***

A reedição de A Herança que Defendemos, 30 anos após sua publicação original, exigiu um trabalho editorial paciente e preciso. Sou grato a Jeannie Cooper, Heather Jowsey e Linda Tenenbaum pela cuidadosa revisão do texto original e a correção dos erros que acabaram passando na primeira edição. Percebendo que, após a passagem de três décadas, muitas das pessoas e eventos referenciados neste livro não seriam muito familiares a um público contemporâneo, Heather empreendeu a criação de um glossário para auxiliar os leitores contemporâneos na compreensão das lutas políticas abordadas em A Herança que Defendemos, o que se provou uma tarefa significativa. O novo glossário, além de tornar este volume mais acessível, será apreciado pelos leitores por si só, por sua apresentação concisa de informações históricas e biográficas importantes.

David North

Detroit, Michigan (EUA)

3 de julho de 2018

Referências

[1] Uma análise detalhada da degeneração oportunista da seção britânica pode ser encontrada em How the Workers Revolutionary Party Betrayed Trotskyism 1973 - 1985, publicado na revista Fourth International, Vol. 13, n˚ 1, Verão de 1986. Todos os principais documentos do racha com o WRP estão disponíveis na edição de Outono de 1986 da Fourth International (Vol. 13, n˚ 2).

[2] Ver o capítulo 18 deste livro.

[3] Os documentos da Workers League estão publicados em The ICFI Defends Trotskyism 1982–1986, na Fourth International, Vol. 13, n˚ 2, Outono de 1986.

[4] Ver o capítulo 35 deste livro.

[5] MARX, Karl; ENGELS, Frederick. Collected Works, Vol. 26. Moscou: Progress Publishers, 1990. p. 389.

[6] TROTSKY, Leon. Carta a James P. Cannon, 12 de setembro de 1939. In: Em Defesa do Marxismo. Disponível em: https://www.marxists.org/portugues/trotsky/1939/09/12.htm. Acesso em: 24 de janeiro de 2022.

[7] Idem.

[8] TROTSKY, Leon. A URSS na Guerra. In: Em Defesa do Marxismo. Disponível em: https://www.marxists.org/portugues/trotsky/1939/09/25.htm. Acesso em: 24 de janeiro de 2022.

[9] BURNHAM, James; SHACHTMAN, Max. Intellectuals in Retreat. In: The New International, Vol. 5, n˚ 1, janeiro de 1939. Disponível em: www.marxists.org/history/etol/writers/burnham/1939/intellectuals/index.htm. Acesso em: 24 de janeiro de 2022.

[10] TROTSKY, Leon. In Defense of Marxism. pp. 257-58.

[11] Ibid., p. 261.

[12] Estou me referindo à frase: “Nem todo pequeno burguês exacerbado poderia ter se tornado Hitler, mas uma pequena parte de Hitler está alojada em todo pequeno burguês exacerbado.” (TROTSKY, Leon. O que é o Nazismo? Disponível em: https://www.marxists.org/portugues/trotsky/1933/06/10.htm. Acesso em: 24 de janeiro de 2022)

[13] The National Question in Europe: Three Theses on the European Situation and the Political Tasks. Fourth International, dezembro de 1942. Disponível em: www.marxists.org/history/etol/newspape/fi/vol03/no12/3theses.htm. Acesso em: 24 de janeiro de 2022.

[14] Idem.

[15] Capitalist Barbarism or Socialism. The New International, Vol. 10, n˚ 10, outubro de 1944 (ênfase no original). Disponível em: www.marxists.org/history/etol/newspape/ni/vol10/no10/ikd.htm. Acesso em: 24 de janeiro de 2022.

[16] Idem.

[17] Idem (ênfase no original).

[18] Idem (ênfase no original).

[19] Idem (ênfase no original).

[20] Idem (ênfase no original).

[21] TROTSKY, Leon. A Revolução Permanente (ênfase no original). Disponível em: https://www.marxists.org/portugues/trotsky/1929/11/rev-perman.htm. Acesso em: 24 de janeiro de 2022.

[22] VAN DER LINDEN, Marcel. The Prehistory of Post-Society Anarchism: Josef Weber and the Movement for a Democracy of Content (1947–1964). Anarchist Studies, 9, 2001. p. 131.

[23] MORROW, Felix. The Class Meaning of the Soviet Victories. Fourth International, Vol. 4, n˚ 3, março de 1943. Disponível em: www.marxists.org/archive/morrow-felix/1943/03/soviet.htm

Acesso em: 24 de janeiro de 2022.

[24] SWP Internal Bulletin, Vol. 8, n˚ 8, julho de 1946, p. 28.

[25] Apud STEIL, Benn. The Marshall Plan: Dawn of the Cold War. Nova York: Simon & Schuster. p. 26.

[26] Ibid., pp. 18–19.

[27] Ibid., pp. 19–20.

[28] AGAROSSI, Elena; ZASLAVSKY, Victor. Stalin and Togliatti: Italy and the Origins of the Cold War. Washington, D.C.: Woodrow Wilson Center Press, 2011. p. 95.

[29] GINSBORG, Paul. History of Contemporary Italy: 1943 – 80. Penguin Books Ltd. Kindle Edition. p.43.

[30] WALL, Irwin M. The United States and the Making of Postwar France, 1945– 47. Cambridge: Cambridge University Press, 1991. p. 97.

[31] GAIDO, Daniel; LUPARELLO, Velia. Strategy and Tactics in a Revolutionary Period: U.S. Trotskyism and the European Revolution, 1943–1946. Science & Society, Vol. 78, n˚ 4. Outubro de 2014. p. 504.

[32] Ibid, p. 503.

[33] HODGSON, Geoff. Trotsky and Fatalistic Marxism. Nottingham: Spokesman Books, 1975. p. 38.

[34] JENKINS, Peter. Where Trotskyism got lost: The restoration of European democracy after the Second World War. Nottingham: Spokesman Books, 1977. Disponível em: www.marxists.org/history/etol/document/fi/1938-1949/ww/essay01.htm. Acesso em: 24 de janeiro de 2022.

[35] GAIDO; LUPARELLO. p. 508.

[36] TROTSKY. In Defense of Marxism. p. 131.

[37] WEBER, Joseph. Dinge der Zeit, Kritische Beiträge zu Kultur und Politik. Hamburgo: Argument, 1995. p. 21 (traduzido por David North).

[38] BOOKCHIN, Murray. Post-Scarcity Anarchism. Montreal: Black Rose Books, 1986. p. 32.

[39] LEVERINK, Joris. Murray Bookchin and the Kurdish Resistance. ROAR magazine, 9 de agosto de 2015. Disponível em: https://roarmag.org/essays/bookchin-kurdish-struggle-ocalan-rojava/. Acesso em: 24 de janeiro de 2022.

[40] GAIDO, LUPARELLO. p. 508.

[41] MANDEL, Ernest. Beyond Perestroika. Londres: Verso Books, 1989. p. xvi.

[42] ALI, Tariq. Revolution From Above: Where is the Soviet Union Going? Surry Hills, Austrália: Hutchinson, 1988. p. xiii.

[43] Idem.

Loading