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Jacobin promove política derrotista de Salvador Allende após vitória da extrema direita em votação no Chile

Publicado originalmente em 9 de junho de 2023

No ano do 50º aniversário do golpe apoiado pela CIA que derrubou o presidente Salvador Allende e instalou a ditadura fascista-militar do general Augusto Pinochet, a revista Jacobin está chamando a “esquerda” para que siga o exemplo de Allende. Esse conselho condenaria os trabalhadores e a juventude, não apenas no Chile, mas nos EUA e internacionalmente, a um destino ainda pior hoje.

Presidente chileno Salvador Allende com oficiais militares [Photo by Biblioteca del Congreso Nacional de Chile / CC BY 3.0]

Como porta-voz dos Socialistas Democráticos dos EUA (DSA), uma fração do Partido Democrata, a Jacobin invocou Allende como modelo político como resposta ao fortalecimento dos herdeiros políticos de Pinochet em meio a uma crise política cada vez mais profunda do governo de pseudoesquerda do presidente chileno, Gabriel Boric, que foi efusivamente endossado pela Jacobin.

No mês passado, o fascista Partido Republicano, cujo líder, José Antonio Kast, é um raivoso defensor de “qualquer um que tenha violado os direitos humanos” durante o governo de Pinochet, e a União Democrática Independente (UDI), herdeira política direta da ditadura de 17 anos, obtiveram uma vitória arrebatadora na eleição nacional. Juntas, elas irão controlar dois terços dos assentos em um “Conselho da Constituinte” que irá reformular a constituição de 1980 imposta por Pinochet.

Esse desastre eleitoral para o governo de Boric ocorreu em meio à oposição em massa entre trabalhadores, jovens e grande parte da classe média ao legado econômico e político de Pinochet. Em outubro de 2019, protestos em massa e várias greves gerais eclodiram contra a desigualdade social, como o ponto culminante de ondas anteriores de greves em massa e protestos contra aposentadorias privatizadas, o alto custo de vida, por educação superior e assistência médica gratuitas, direitos à terra indígena e outras questões sociais e democráticas.

Todo o establishment político, inclusive o stalinista Partido Comunista e a Frente Ampla de pseudoesquerda, que hoje lideram o governo Boric, canalizaram esses protestos por trás de um “Acordo para a Paz Social e uma Nova Constituição” com o então presidente, Sebastián Piñera, um bilionário de direita. (Tanto Kast quanto Piñera possuem irmãos que foram ministros durante o governo de Pinochet).

Em 2020, quase 80% dos eleitores favoreceram a substituição da odiada constituição de Pinochet em um referendo no qual metade dos chilenos se absteve, demonstrando a desconfiança em massa em uma mera reforma do Estado capitalista. A proporção de assentos para a extrema direita na Convenção Constitucional inicial foi de apenas 23%, enquanto a maioria dos assentos foi para ativistas e líderes locais ligados à pseudoesquerda.

Boric foi eleito no final de 2021 após dois turnos em que cerca de metade dos chilenos se absteve novamente, embora a participação ainda fosse maior do que a média histórica. O primeiro turno foi vencido pelo fascista Kast, que concorreu em grande parte como oponente do processo constituinte. Boric prometeu, em seu discurso de posse, “construir pontes” com os fascistas. Essa é a única promessa de campanha que ele manteve fielmente.

Assim como seu antecessor, Boric manteve uma abordagem de exclusiva vacinação para a atual pandemia de COVID-19, colocando os lucros acima das vidas. Ele aumentou o orçamento de segurança e apoiou as sanções dos EUA e da OTAN e a guerra contra a Rússia. Ele enviou tropas para o sul contra os mapuches e para o norte contra os migrantes, enquanto respondia aos protestos contra a crise de custo de vida, fechamento de fábricas e demissões enviando a polícia para atacar e prender trabalhadores.

Enquanto isso, a Convenção Constitucional controlada pela pseudoesquerda elaborou uma proposta que fechou os olhos para todas as principais preocupações que impulsionaram o levante social em 2019. Ela manteve as forças repressivas do Estado e seus poderes autoritários, enquanto usava impotentes proteções ambientais, uma proposta de burocracia indígena vinculada ao Estado e paridade de gênero como verniz para ocultar seu caráter reacionário. A proposta foi rejeitada em setembro de 2022 por 63% dos eleitores em um plebiscito que teve 85% de participação.

Enquanto isso, o índice de aprovação do governo Boric caiu para menos de 30%, e a pseudoesquerda sofreu um grande fracasso nas mãos dos fascistas nas eleições do mês passado.

A vitória da extrema-direita na eleição do “Conselho Constituinte” do Chile, assim como as recentes derrotas eleitorais do Syriza na Grécia e do Podemos na Espanha, demonstra que a “esquerda” nominal, incluindo a burocracia sindical e seus seguidores de pseudoesquerda, foi profundamente desacreditada por seu compromisso com a austeridade social, a guerra e os ataques aos padrões de vida e aos direitos democráticos.

Um terço dos eleitores chilenos se absteve ou votou em branco ou nulo, enquanto os votos para os republicanos fascistas refletiram em grande parte a falta de uma alternativa para registrar a sua oposição, não um sinal de apoio ativo. No âmbito internacional, esses resultados sinalizam convulsões sociais revolucionárias e internacionais no próximo período.

Jacobin defende mais adaptações à extrema direita

A Jacobin não tirou nenhuma lição do desastre eleitoral, absolvendo Boric de qualquer responsabilidade, enquanto defendia mais adaptações à extrema direita, o que inclui promover ilusões na perspectiva de uma nova constituição elaborada pelos fascistas.

O porta-voz dos DSA apoiou fervorosamente a campanha de Boric e comemorou sua eleição como “a melhor maneira de garantir os objetivos da rebelião social de outubro de 2019”. Na época, a revista fez um apelo a todos os “grupos entorno de uma única pauta, juntamente com todos os movimentos sociais e correntes políticas dispostos a criar uma Frente Popular para uma Constituição Antineoliberal”.

Esse curso, que significava subordinar a oposição social à coalizão governista de Boric e dos stalinistas, foi o mesmo seguido pela coalizão da Unidade Popular de Allende, que buscou, acima de tudo, impedir o desenvolvimento de uma alternativa revolucionária e socialista genuína.

Embora há 50 anos os partidos comunistas e socialistas conseguiam promover ilusões no governo de Allende dentro da classe trabalhadora chilena, esses partidos e os pseudoesquerdistas que apoiam Boric não possuem nem de longe a mesma influência hoje.

No mês passado, a Jacobin publicou um artigo intitulado “O Chile entrou em um período termidoriano”. O seu autor, Marcelo Casals, defende uma política de passividade e recuo.

Referindo-se às leis assinadas por Boric, que dão à polícia e aos militares o direito de atirar e perguntar depois, e seus ataques aos migrantes, Casals escreve que a “esquerda” pode apenas ficar de braços cruzados e ver o “quão eficaz será a tentativa de adaptação política de Boric”. A segurança e a migração “tornaram-se questões prioritárias”, e Boric supostamente não tem outra opção a não ser se adaptar à extrema-direita.

Em 1º de junho, a Jacobin publicou uma entrevista com um de seus redatores, Aldo Maradiaga, que conclui que “todos sabemos que vivemos em um sistema capitalista”, mas “existe vontade excessiva de ver um processo específico como a única causa definidora que irá mudar tudo”. Em outras palavras, o capitalismo, cuja ditadura sobre a vida econômica e política é garantida por qualquer constituição capitalista, não deve ser desafiado.

Por sua vez, Casals denuncia qualquer crítica ao fato de que a primeira Convenção Constitucional foi dominada pela política de identidade como sendo “fora de sintonia com as mudanças pelas quais a esquerda chilena passou nas últimas décadas”.

O WSWS designou essas tendências políticas como “pseudoesquerda”, explicando que elas representam camadas da classe média alta que empregam políticas de identidade e demagogia populista e nacionalista para colocar os trabalhadores uns contra os outros, isolando e traindo suas lutas. Em troca de seus serviços para a elite dominante, elas exigem uma distribuição mais favorável de riqueza e posições políticas para si próprias.

Casals confirma essa definição ao descrever um ambiente de “esquerda” em que as “aspirações populares da classe trabalhadora” são ignoradas e as “críticas simplistas e, às vezes, infundadas ao igualitarismo republicano” alcançaram um “papel de destaque”.

Casals conclui pedindo a essas mesmas camadas que imitem Allende. Lembrem-se da “paciência e da visão de longo prazo” de Allende, ele pede, apontando para os “avanços e retrocessos que ocorreram ao longo de várias décadas”, a “lenta acumulação de forças e da construção de uma hegemonia duradoura”.

Surpreendentemente, Casals, um historiador chileno, não faz nenhuma análise do destino real de Allende e de sua coalizão de Unidade Popular, que era liderada pelos Partidos Socialista e Comunista que estão hoje no governo Boric.

Governo de Unidade Popular de Allende abriu caminho para o golpe de 1973

A transformação em mito de Allende pela Jacobin tem como objetivo justificar seu próprio apoio às administrações de Boric e Biden. A publicação encobre deliberadamente o papel do governo da Unidade Popular na preparação do caminho para o golpe de 1973.

Sob o slogan “O caminho pacífico do Chile para o socialismo”, Allende trabalhou para desarmar, tanto política quanto fisicamente, a classe trabalhadora e as massas camponesas chilenas empobrecidas. Com o stalinista Partido Comunista desempenhando o papel principal, a Unidade Popular trabalhou para conter um movimento pré-revolucionário, envolvendo expropriações generalizadas de fábricas, minas e terras que eram inicialmente administradas e defendidas por organizações democráticas de trabalhadores e camponeses.

Para salvaguardar a “hegemonia” do Estado capitalista, Allende e os líderes da Unidade Popular insistiram em dissolver os grupos armados de trabalhadores e camponeses, que enfrentaram represálias brutais de gangues fascistas. Até o momento do próprio golpe, os líderes da Unidade Popular declararam incessantemente que os militares e a polícia defenderiam a democracia e a vontade do povo. Enquanto isso, Allende pedia aos trabalhadores para que fizessem “sacrifícios”, inclusive trabalhar horas extras não remuneradas, para apaziguar a extrema direita e defender seu “caminho chileno”.

Em meio a uma ofensiva crescente orquestrada pelo governo Nixon para desestabilizar o governo Allende, incluindo um embargo de mercadorias e crédito, expurgos dos militares, bloqueios de empregadores e outras formas de sabotagem e provocações fascistas, os trabalhadores responderam repetidamente expandindo e consolidando suas próprias organizações e o controle sobre a economia.

Apesar de implementar nacionalizações na mineração, nos bancos e em outros setores, bem como aumentos salariais que igualavam ou até mesmo superavam a taxa de inflação, Allende fez uma onda de concessões após a outra à extrema direita em resposta à pressão do imperialismo, dos empregadores, dos militares e da igreja.

Em um dos vários pontos de inflexão importantes, uma tentativa de golpe de 29 de junho de 1973, realizada por um regimento de tanques, foi derrotada principalmente pelas redes de organizações de trabalhadores de base chamadas de “Cordones Industriales”, que imediatamente começaram a assumir o controle de milhares de fábricas e locais de trabalho. Centenas de milhares de pessoas marcharam até o Palácio Presidencial La Moneda exigindo o “poder dos trabalhadores”.

Allende respondeu naquele fatídico dia pedindo aos trabalhadores que mantivessem sua confiança nos militares e na polícia de Carabineros. “Camaradas trabalhadores: vamos nos organizar. Vamos criar, criar poder popular, mas não contra ou independente do governo”, disse ele em um discurso após a tentativa de golpe.

Allende e seus parceiros desmobilizaram deliberadamente essas contraofensivas revolucionárias da classe trabalhadora, enquanto o governo buscava conversas de bastidores com o governo Nixon, os militares e os partidos de direita.

Em 11 de setembro de 1973, os chefes de todos os ramos militares, sob a direção do General Pinochet, que o próprio Allende havia nomeado como comandante-chefe, lançaram um golpe meticulosamente preparado pela CIA e pela inteligência militar dos EUA. Pinochet aboliu as liberdades democráticas, baniu todos os partidos e organizações de trabalhadores e camponeses, prendeu e torturou seus líderes e dezenas de milhares de militantes de base, matando mais de 3 mil pessoas. Centenas de milhares de chilenos foram forçados a fugir para o exílio.

A principal responsabilidade pela ausência de uma liderança genuinamente revolucionária na classe trabalhadora do Chile é da liderança pablista do Secretariado Unificado.

Durante décadas, após sua fundação como seção chilena da Quarta Internacional em 1938, o Partido Revolucionário dos Trabalhadores (POR) estabeleceu uma presença importante entre os principais setores da classe trabalhadora do país. Porém, em 1963, o POR se juntou ao Partido Socialista dos Trabalhadores (SWP) nos EUA em uma reunificação com os pablistas, que haviam abandonado o trotskismo e sua perspectiva de mobilização revolucionária independente da classe trabalhadora em favor da adaptação às lideranças nacionalistas stalinistas, castristas e outras lideranças pequeno burguesas que ofereciam supostamente um novo caminho para o socialismo. Logo depois, o POR se transformou no Movimento Revolucionário de Esquerda (MIR), um amálgama de tendências maoístas e castro-guevaraístas que glorificavam a guerra de guerrilha. O MIR forneceu então um apoio crucial à esquerda para a Unidade Popular, disfarçado de “apoio crítico”.

Allende e o Partido Democrata

Ao glorificar Allende, a Jacobin e os DSA buscam dar cobertura para as políticas de direita de Boric e para sua própria subserviência ao governo Biden nos EUA, enquanto trabalham para preparar o mesmo tipo de traição criminosa da Unidade Popular.

A Jacobin e os DSA têm dado pretextos consistentemente pelos acordos de Biden com o Partido Republicano para apagar programas sociais, proibir greves, deportar migrantes e aprovar orçamentos militares recordes como parte de esforços de guerra imprudentes contra a Rússia e a China.

O Partido Republicano americano, assim como seu homólogo chileno, é liderado por fascistas. Em 6 de janeiro de 2021, o ex-presidente Donald Trump, a liderança republicana e setores do aparato militar e de inteligência tentaram utilizar a invasão do Congresso por uma multidão fascista para anular a vitória eleitoral de Biden, derrubar a Constituição e estabelecer uma ditadura.

O editor-chefe da Jacobin, Bhaskar Sunkara, respondeu aqueles que descreveram isso como um golpe dizendo para que “se toquem” e insistiu na “estabilidade das instituições republicanas dos EUA”.

Depois que os seguidores fascistas brasileiros do ex-presidente Jair Bolsonaro realizaram uma tentativa de golpe fascista semelhante em 8 de janeiro de 2023, com a ajuda de setores da liderança militar, o presidente Lula, endossado pela Jacobin, deu enormes financiamentos aos militares e fez todo o possível para os proteger de investigações. A Jacobin escreveu vários artigos minimizando o perigo e declarando absurdamente que a tentativa de golpe “colocou Lula em uma posição mais forte para defender a democracia do Brasil”.

Enquanto isso, os fascistas continuam suas conspirações; durante o governo de Allende, vale lembrar, ocorreram várias tentativas abortadas de golpe antes de 11 de setembro de 1973. Em outros lugares da América Latina, recentemente, em 2019 na Bolívia e em 2022 no Peru, fascistas e militares apoiados pelos EUA derrubaram com sucesso os presidentes Evo Morales e Pedro Castillo, respectivamente. Cada golpe foi seguido por protestos em massa que foram brutalmente reprimidos.

Ao invocar a “paciência” e a “visão” de Allende, os DSA estão oferecendo seus serviços à classe dominante. A sua política tem como objetivo acalmar a classe trabalhadora para permitir que o fascismo e o Estado capitalista preparem seus ataques.

Após 50 anos da derrubada de Allende, as lições da sangrenta derrota no Chile são mais vitais do que nunca para a classe trabalhadora latino-americana e internacional. Os trabalhadores não podem depositar a menor confiança em governos burgueses de “esquerda” liderados por figuras como Boric no Chile, Lula no Brasil ou Petro na Colômbia, mas apenas em sua própria luta revolucionária independente.

A tarefa decisiva continua sendo hoje o que era no Chile cinco décadas atrás: resolver a crise da liderança revolucionária na classe trabalhadora. Isso significa construir seções do Comitê Internacional da Quarta Internacional em toda a América Latina e internacionalmente.

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