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Perspectivas

Falsificação histórica a serviço de propaganda de guerra

Publicado originalmente em 18 de julho de 2023

Em sua mais recente incursão no campo da falsificação histórica, o New York Times publicou na terça-feira uma análise de notícias que culpa a União Soviética pela Segunda Guerra Mundial. O longo artigo de autoria de Andrew E. Kramer, intitulado “A Current War Collides with the Past: Remnants of World War II in Ukraine” (Guerra atual colide com o passado: Resquícios da Segunda Guerra Mundial na Ucrânia), não faz nenhuma menção ao Holocausto ou à guerra de aniquilação nazista contra o povo soviético.

O artigo é apenas a mais recente mentira histórica do Times a serviço da guerra por procuração dos EUA-OTAN na Ucrânia.

Desde o início da guerra, o Times tentou legitimar a narrativa pró-fascista dos nacionalistas ucranianos. Os principais elementos foram a minimização do Holocausto e da colaboração dos nacionalistas ucranianos no assassinato em massa de judeus e poloneses; a minimização da aliança da Organização dos Nacionalistas Ucranianos (OUN) com o regime nazista; a equivalência política e moral entre a Alemanha nazista e a União Soviética; e as repetidas afirmações de que não existe influência neonazista e fascista na Ucrânia atual.

Artilharia alemã contra Kiev, 1941

É nesse contexto que Kramer apresenta a estarrecedora afirmação de que a Segunda Guerra Mundial começou com a invasão da Polônia pela União Soviética. Ele escreveu:

A Segunda Guerra Mundial começou no que hoje é a Ucrânia em 1939 com uma invasão soviética no território então controlado pela Polônia na Ucrânia ocidental, em uma época em que a União Soviética e a Alemanha nazista estavam em uma aliança militar. Quando esse pacto foi rompido em 1941, a Alemanha atacou e lutou de oeste a leste em toda a Ucrânia.

Essa afirmação viola a cronologia básica da guerra. A Segunda Guerra Mundial não começou com a entrada soviética no terço de território do leste polonês em 17 de setembro de 1939, mas com a blitzkrieg nazista contra os dois terços ocidentais do país em 1º de setembro de 1939.

O Times, confrontado com uma enxurrada de cartas hostis, alterou cinicamente a frase sem dar explicações, e de uma maneira que perpetua o objetivo da falsificação original. A frase foi alterada para: “A Segunda Guerra Mundial chegou ao que hoje é a Ucrânia em 1939 com uma invasão soviética no território então controlado pela Polônia no Ucrânia ocidental...” A troca furtiva de verbos não altera em nada a intenção de Kramer. O leitor deve acreditar que a União Soviética “começou” a Segunda Guerra Mundial.

A partição da Polônia, dos Estados Bálticos e da Finlândia foi definida pela Alemanha nazista e pela União Soviética no pacto Molotov-Ribbentrop de agosto de 1939.

Stalin, cujos apelos da Frente Popular às “democracias ocidentais” do Reino Unido, França e EUA não foram ouvidos; com seus apelos assumindo a forma de trair os movimentos dos trabalhadores aos governos capitalistas para obter favores – concluiu o acordo com a Alemanha nazista em uma tentativa desesperada de adiar as consequências inevitáveis de suas próprias traições da classe trabalhadora europeia.

O acordo de Stalin com Hitler foi um movimento completamente reacionário e uma traição impressionante. Conforme Trotsky – que havia previsto o acordo de Stalin com Hitler – explicou, “Hitler precisava da amigável ‘neutralidade’ da URSS, além das matérias-primas soviéticas” para conduzir sua política de guerra. O pacto produziu uma onda de repulsa contra a União Soviética e desorientou a classe trabalhadora internacional e, especialmente, os trabalhadores da Alemanha, que sofriam sob o domínio nazista. “Em relação à classe trabalhadora”, escreveu Trotsky, “esses senhores não pensam nem um pouco”. Ele continuou:

É necessário penetrar por um momento na psicologia de um trabalhador revolucionário alemão que, correndo risco de vida, está liderando a luta clandestina contra o nacional-socialismo e, de repente, vê que o Kremlin, detentor de grandes recursos, não apenas não luta contra Hitler, mas, ao contrário, fecha um acordo vantajoso na arena do roubo internacional. O trabalhador alemão não tem o direito de cuspir na cara dos seus professores de ontem?

Também é preciso ressaltar que Stalin não foi o único a subestimar os planos de Hitler. Apenas um ano antes de seu pacto com a União Soviética, o Reino Unido e a França negociaram o famoso Acordo de Munique com a Alemanha, entregando a Tchecoslováquia aos carrascos nazistas. Assim como o primeiro-ministro britânico Neville Chamberlain, Stalin se iludiu acreditando que Hitler cumpriria sua parte no acordo. Além disso, o Reino Unido e a França imperialistas esperavam que Hitler, ao invés de se deslocar para o ocidente, entrasse em guerra com o Estado operário soviético.

Trotsky, exilado no México e no auge de seus poderes de análise política, alertou que quaisquer concessões feitas por Hitler eram “na melhor das hipóteses, de natureza episódica, e sua única garantia é a assinatura de Ribbentrop em um ‘pedaço de papel’”. Trotsky previu, menos de um ano antes de ser assassinado por um dos agentes de Stalin, que a União Soviética seria invadida assim que Hitler acertasse as contas na frente ocidental.

Stalin e os bajuladores burocráticos que o cercavam tiveram que desconsiderar o Mein Kampf de Hitler e inúmeros discursos raivosos nos quais o Führer prometia que a Alemanha varreria a União Soviética da face da Terra, destruiria os judeus e subjugaria os povos eslavos “sub-humanos” (Untermensch) da Ucrânia e da Rússia para criar o “espaço vital” (lebensraum) para a raça ariana. Durante os 21 meses que separaram o Pacto Molotov-Ribbentrop da invasão alemã da União Soviética, Stalin seguiu à risca o pacto de não agressão, desconsiderando os repetidos alertas de que uma invasão era iminente.

O pacto de não agressão entre Hitler e Stalin não foi simplesmente “quebrado”, como Kramer escreve absurdamente. Hitler o repudiou, na forma da maior invasão da história mundial até hoje, a Operação Barbarossa. Apesar de todas as traições de Stalin, a União Soviética continuou sendo o alvo central dos planos de Hitler. Kramer não menciona que cerca de 27 milhões de cidadãos soviéticos foram mortos na guerra, ou que 900 mil judeus ucranianos foram assassinados pelos nazistas e seus aliados fascistas ucranianos – fascistas cujos herdeiros políticos diretos ocupam atualmente o regime de Kiev e seu exército. O Times deixa de lado outro fato de imensa importância: Foi a invasão da União Soviética que preparou o terreno para os crimes mais horríveis do regime nazista, inclusive o Holocausto.

O restante do artigo de Kramer relata a descoberta de resquícios da Segunda Guerra Mundial, como pichações de suásticas, cadáveres alemães, trincheiras com décadas de existência e outros objetos, no conflito atual. Kramer mal consegue esconder sua alegria com essas descobertas, nem seu entusiasmo com a forma como os combates atuais espelham perfeitamente o ataque da invasão nazista à União Soviética décadas antes:

A Ucrânia está hoje ecoando a ofensiva [nazista] da Segunda Guerra Mundial, lutando em locais a sudeste de Zaporizhzhia, no que os militares ucranianos chamam de “direção Melitopol”. O objetivo estratégico é o mesmo de oito décadas atrás – isolar os soldados inimigos na região de Kherson e ameaçar a Crimeia…

Kramer considera que os “soldados inimigos” da Segunda Guerra Mundial foram os homens e mulheres soviéticos do Exército Vermelho, que incluía milhões de russos e ucranianos. Ele não sente vergonha em apresentar o atual exército ucraniano, armado até os dentes por Washington, Berlim, Londres e seus aliados da OTAN, como os herdeiros da Wehrmacht.

Assim como o governo Biden e seus aliados da OTAN, o Times está completamente comprometido com a guerra por procuração na Ucrânia. Seu papel especial, como o principal órgão do liberalismo americano, é vender a guerra para um público que desconfia instintivamente das declarações da Casa Branca sobre “lutar pela democracia” após décadas de falsas declarações. Porém, sempre obediente aos objetivos imperialistas de Washington, o Times encheu suas páginas com afirmações de que Putin é a última e – desta vez de verdade – a verdadeira encarnação do mal, depois de Hussein, Assad, Gaddafi, Milosevich, Noriega, etc., e, além disso, que a invasão russa da Ucrânia foi um ato completamente não provocado.

O World Socialist Web Site fez intransigente oposição a Putin, seu governo e as forças de classe reacionárias que ele representa há décadas, mesmo enquanto o Times comemorava a restauração do capitalismo na Rússia e na antiga União Soviética. Nós nos opomos à invasão reacionária de Putin, mas ela não foi “não provocada”. A invasão foi uma resposta desesperada à expansão da OTAN. Como já foi declarado abertamente por vários estrategistas pró-OTAN, Washington pretende usar a guerra para conseguir uma mudança de regime em Moscou e desmembrar a Rússia.

O Times também foi encarregado de falsificar a natureza e o caráter do regime ucraniano. Isso é difícil, pois a adesão de Kiev ao fascismo está à vista de todos. Estátuas são erguidas em homenagem ao colaborador nazista Stepan Bandera, enquanto monumentos aos soldados soviéticos que lutaram contra os invasores nazistas, em uma luta conhecida por russos e ucranianos como “a Grande Guerra Patriótica”, são profanados e destruídos. A força de combate mais famosa da Ucrânia, o Batalhão Azov, é uma organização abertamente supremacista branca e pró-nazista.

Durante o primeiro ano de guerra, o Times tentou encobrir essas verdades inconvenientes. A propaganda pró-guerra do Times deu hoje lugar à defesa pró-nazista. Kramer apresentou aos leitores uma interpretação da Segunda Guerra Mundial com a qual Joseph Goebbels não teria muito o que contestar. O seu artigo segue o silêncio absoluto da mídia ocidental sobre o Holocausto na Lituânia durante a recente cúpula da OTAN em Vilnius e a apologia do Times ao uso de parafernália nazista por soldados ucranianos.

A reescrita da história da Segunda Guerra Mundial pelo Times não surgiu do nada. Assim como fez com sua falsificação racialista da história americana, o Projeto 1619, o Times se apoiou em alguns acadêmicos sem princípios – exemplificados pelo ex-historiador de Yale e atual especialista em propaganda Timothy Snyder – e na cumplicidade ou no silêncio de grande parte da profissão. Certamente não é nenhuma surpresa que figuras como Snyder, cuja escrita de história é feita sob encomenda para o Departamento de Estado, ou o admirador alemão de Hitler, Jörg Baberowski, da Universidade de Humboldt, ou o neoliberal Francis Fukuyama, da Universidade de Stanford, que agora elogia abertamente o Batalhão Azov, alistem-se a serviço da guerra imperialista.

Porém, onde estão as legiões de historiadores “revisionistas” e “de esquerda” da Rússia e da União Soviética que sabem algo sobre a invasão nazista da Segunda Guerra Mundial em geral e sobre a catástrofe na Ucrânia em particular? Existem algumas exceções corajosas, mas muitos outros saudaram com entusiasmo a guerra por procuração da OTAN contra a Rússia. O principal órgão acadêmico de estudos russos, a Associação de Estudos Eslavos, do Leste Europeu e da Eurásia (ASEEES), concentrou sua próxima conferência anual na “descolonização” da Rússia. Será que a CIA ou o Pentágono pensariam em um nome diferente para esse evento? Em meio à guerra, as mais vis declarações antirrussas e “sovietologistas”, que eram antes consideradas mortas e enterradas com os excessos da era McCarthy, estão sendo ressuscitadas.

Alguns anos atrás, a afirmação apresentada com naturalidade por Kramer – de que a União Soviética iniciou a Segunda Guerra Mundial – teria sido recebida com uma onda de denúncias pelos historiadores. O mesmo aconteceria com o silêncio de seu artigo sobre o Holocausto e o assassinato em massa de cidadãos soviéticos, mas, em 2023, as mentiras e distorções históricas predominam.

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