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Perspectivas

A eleição de Milei e o colapso do peronismo e da democracia burguesa na Argentina

A eleição no último domingo de Javier Milei como presidente da Argentina por uma chocante margem de 11% contra o candidato peronista Sergio Massa, ministro da economia do governo atual, tem implicações políticas globais importantes para a classe trabalhadora.

Javier Milei, presidente eleito da Argentina, fala em sua sede de campanha após o fechamento das seções eleitorais durante as eleições primárias em Buenos Aires, Argentina, domingo, 13 de agosto de 2023. [AP Photo/Natacha Pisarenko]

Todas as grandes cidades, com exceção de algumas seções de Buenos Aires, e 20 das 23 províncias votaram a favor de Milei, uma personalidade da TV que entrou para a política oficial há apenas dois anos. Milei é conhecido por suas explosões à la Hitler contra gastos governamentais e os pobres, sua adoração pelo imperialismo americano e por Israel, e suas crenças obscurantistas, incluindo suas alegações de receber conselhos do seu cachorro morto.

As principais seções da classe dominante argentina e do imperialismo alinharam-se a Milei e encorajaram seus planos de “terapia de choque” de austeridade social e privatizações, bem como o aumento das forças repressivas militares e paramilitares.

A Bloomberg citou, por exemplo, um magnata argentino que disse: “Somente um louco pode fazer o que é necessário para levar o país adiante”. O ex-presidente Mauricio Macri, que está oferecendo seu partido para ajudar Milei a governar, pediu em rede nacional de televisão que o “núcleo revolucionário da juventude” de Milei se choque contra os “orcs” que protestam contra suas políticas, em um apelo flagrante à formação de gangues fascistas.

A vice-presidente em exercício e líder de fato do peronismo, Cristina Kirchner, cancelou uma viagem à Itália e convidou sua sucessora fascista, Victoria Villarruel, para se reunir e discutir a transição na quarta-feira, com a última descrevendo a reunião como “histórica para todos os argentinos”.

A ascensão de Milei e Villarruel ao poder em 10 de dezembro é de fato histórica, porque serve para pôr fim a qualquer ilusão de que a sociedade argentina se imunizou contra o fascismo após a brutal ditadura militar sustentada pelos EUA que governava há apenas quatro décadas.

Conforme resumido pelo jornalista Emilio Gullo: “Como um cavalo de Troia, mas com sinais de neon piscantes, o Partido Militar... acaba de entrar em um governo de forma democrática. Além de negar o número simbólico de 30 mil desaparecidos e denegrir constantemente as Mães da Plaza de Mayo, Villarruel é filha e sobrinha de soldados condenados e tem o apoio dos torturadores que estão presos por crimes contra a humanidade”.

O perigo do fascismo é um fenômeno global que não pode ser subestimado, como demonstrado pelo apoio das elites dominantes a figuras como Milei, Trump nos EUA e Bolsonaro no Brasil, Meloni na Itália e o recém-eleito Geert Wilders na Holanda, entre outros.

Sem dúvida, Milei e a classe dominante argentina veem o apoio do governo Biden e das potências europeias ao massacre de Israel em Gaza como uma inspiração e um sinal de apoio para desencadear futuramente a violência genocida contra a classe trabalhadora empobrecida no seu país.

No entanto, fascismo não é apenas a utilização de repressão brutal e retórica ultranacionalista ou fanática. É um método de governo capitalista que busca aniquilar todas as organizações e lideranças operárias, que só pode ser implementado como resultado da derrota histórica e desmoralizante de uma onda de luta revolucionária da classe trabalhadora.

Semelhante derrota não aconteceu na Argentina. Na realidade, como parte de um levante mundial crescente dos trabalhadores contra o capitalismo e a guerra, os dois anos que precederam a vitória eleitoral de Milei na Argentina foram caracterizados por um número recorde de protestos de rua em 2022 e uma onda de greves selvagens contra as políticas de austeridade ditadas pelo FMI e a crise do custo de vida.

Os epicentros dessas lutas, como Santa Cruz, Salta, Jujuy, Misiones e Chubut, bem como as camadas de trabalhadores particularmente mais jovens e empobrecidas, dependentes do setor informal e de assistência social, que estiveram à frente inúmeras manifestações de massas em Buenos Aires, votaram em Milei por ampla margem.

Esse fenômeno sociopolítico contraditório só pode ser explicado pelo fato de que o movimento objetivo altamente progressista da classe trabalhadora argentina não consegue encontrar expressão política em nenhum dos partidos existentes da chamada “esquerda”. Pelo contrário, os trabalhadores estão cada vez mais em choque com todos esses partidos e com a ordem capitalista que eles representam.

Quaisquer ilusões que possam existir entre os trabalhadores nas ridículas soluções econômicas “anarcocapitalistas” propostas por Milei serão dissipadas no calor das lutas de massas contra os ataques draconianos em preparação pelo novo governo.

Embora haja confusão política, o voto em massa no candidato fascista não representa a aprovação dos trabalhadores argentinos ao seu programa de exploração capitalista extrema e irrestrita. Foi, acima de tudo, um voto de protesto contra o sistema político burguês apodrecido, majoritariamente associado ao peronismo.

Milei não é uma mera “aberração”, como afirma a pseudoesquerda. Ela disse o mesmo sobre Trump e Bolsonaro, que continuam sendo a principal oposição política nos EUA e no Brasil depois de terem liderado tentativas de golpe fascista em 2021 e 2023, respectivamente. Assim como seus colegas, Milei emerge de condições históricas e materiais bem definidas.

Em primeiro lugar, nada restou da fidelidade das massas ao peronismo, que foi o carro-chefe dos movimentos nacionalistas burgueses na América Latina. Desde sua ascensão ao poder, em 1946, o movimento político liderado por Juan Domingo Perón cultivou uma associação com direitos trabalhistas, universalização da saúde e da educação e, mais tarde, com o “fenômeno Evita” que apresentou os interesses dos pobres e oprimidos como suposto objeto da política governamental. Hoje, do ponto de vista dos trabalhadores, o aparato peronista é composto por uma multidão de funcionários corruptos e criminosos burocratas sindicais que conspiram para impor os ditames das grandes empresas e bancos.

O principal vetor desses acontecimentos políticos turbulentos é o declínio da terceira maior economia da região em uma das piores crises de sua história. A hiperinflação dizimando os padrões de vida de milhões de argentinos é o produto do aprofundamento da crise do capitalismo marcada pela guerra, a pandemia de COVID-19, o aumento das taxas de juros e outros choques nos mercados mundiais que afetam todos os países.

A mudança em curso na situação objetiva mundial não está deixando “pedra sobre pedra” de todos os movimentos nacionalistas burgueses, social-democratas e outros movimentos nacional-reformistas que o imperialismo utilizou para suavizar os antagonismos de classe. Esse é o destino inevitável de todos os chamados governos e partidos da “maré rosa” surgidos nos últimos 25 anos na América Latina.

O colapso político do peronismo arrasta consigo todas as organizações da pseudoesquerda argentina. Sem seus serviços nefastos, o peronismo não teria sido capaz de seguir dominando a vida política argentina após ter abandonado qualquer política real de reforma social desde o início da década de 1970 e ter traído repetidas vezes os trabalhadores.

Várias forças autodeclaradas socialistas foram as principais responsáveis por prover uma cobertura de esquerda ao aparato peronista. Depois do Partido Comunista Stalinista, a principal dessas tendências foi aquela fundada pelo falecido Nahuel Moreno, que coordenou a dissolução de várias organizações trotskistas na América Latina durante seu rompimento com o Comitê Internacional da Quarta Internacional (ICFI) em 1963.

Desde a década de 1950, a tendência morenista manifestava uma inclinação reacionária ao oportunismo nacional que assumiu a forma de subordinação aberta ao peronismo nos sindicatos e nos governos até o golpe militar de 1976. Depois de sua atuação para impedir uma luta revolucionária da classe trabalhadora contra o regime burguês peronista, Moreno aceitou passivamente a ditadura bancada pela CIA, que ele nomeou “a mais democrática da América Latina”. Enquanto deixava o país, Moreno disse aos membros de seu Partido Socialista dos Trabalhadores (PST) que não se preocupassem e continuassem sua atuação pública. Cerca de 100 militantes do PST foram “desaparecidos” e centenas de outros foram presos e torturados.

Hoje, os sucessores de Moreno e seus parceiros de coalizão na chamada Frente de Esquerda e dos Trabalhadores (FIT-U) estão trilhando o mesmo caminho.

A explosão da crise capitalista e o colapso do peronismo abrem caminho para a realização da tarefa histórica de construir uma direção genuinamente revolucionária da classe trabalhadora. Esse processo exige o estabelecimento de comitês de ação e defesa nas bases, independentes e opostos ao aparato político e sindical peronista, para combater os ataques de Milei e preparar uma luta pelo poder em coordenação política com os trabalhadores de base em toda a América Latina, nos centros imperialistas e além.

Essa tarefa histórica só pode ser desenvolvida em oposição irreconciliável aos inimigos morenistas e pablistas do trotskismo, que estão participando cada vez mais abertamente de uma aliança contrarrevolucionária com a burguesia nacional e o imperialismo.

De forma similar a como apoiaram a guerra dos EUA e da OTAN contra a Rússia na Ucrânia, os grupos da FIT-U se alinharam com o candidato peronista Sergio Massa, que foi descrito pelos próprios morenistas como o “candidato da embaixada americana” e que é um firme apoiador do genocídio sionista em Gaza.

Agora, os partidos da FIT-U tentam acalmar a classe trabalhadora minimizando o perigo da ditadura, ao mesmo tempo em que reasseguram a si mesmos de que o resultado não será diferente de governos anteriores e depositam suas esperanças no cadáver em decomposição da burocracia sindical peronista.

O trotskismo é o total oposto dessa perspectiva. A validade da Teoria da Revolução Permanente, formulada por Leon Trotsky e encampada pela Revolução Russa de 1917, foi novamente demonstrada na falência do peronismo e de todos os demais movimentos nacionalistas burgueses. Essa perspectiva, defendida pelo Comitê Internacional da Quarta Internacional (CIQI) contra as tentativas revisionistas pablistas de liquidar o movimento trotskista no stalinismo, no castrismo e em outras formas de nacionalismo burguês, estabeleceu que, em um país com desenvolvimento capitalista tardio, a luta por emancipação do imperialismo e outras tarefas democráticas só podem ser realizadas sob a liderança do proletariado como parte da revolução socialista mundial.

É somente por meio de uma assimilação e estudo cuidadosos da história, das tradições e do programa do CIQI, como um passo fundamental para o estabelecimento de seções desse partido mundial da revolução socialista na Argentina e internacionalmente, que surgirá uma vanguarda revolucionária na classe trabalhadora. Não há tempo a perder.

Publicado originalmente em inglês em 24 de novembro

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