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Marighella, filme sobre o líder da guerrilha urbana no Brasil, estreia depois de atraso de dois anos

Publicado originalmente em 16 de dezembro de 2021

Em 4 de novembro, estreou no Brasil Marighella. O filme é centrado nos últimos dois anos de vida do membro de longa data do Partido Comunista Brasileiro (PCB) e mais tarde líder guerrilheiro, Carlos Marighella. A data escolhida para a estreia foi o 52º aniversário do assassinato de Marighella nas mãos da polícia política do estado de São Paulo, o Departamento de Ordem Política e Social (DOPS).

O lançamento de Marighella é um evento com significativas implicações culturais e políticas no Brasil. Após sua estreia mundial no festival de Berlim de 2019, o filme tornou-se imediatamente alvo de uma perversa campanha de extrema-direita no país, que o acusou de glorificar o crime e o comunismo, que eram igualados pelo governo que se iniciava do ultra-direitista Jair Bolsonaro.

Após sua primeira exibição no festival de Berlim, o diretor Wagner Moura declarou: “Não é só um filme sobre os que resistiram à ditadura militar dos anos 60 e 70, mas também sobre os que resistem hoje no Brasil”, referindo-se ao violento giro à direita do sistema político brasileiro nos anos anteriores, e ao governo Bolsonaro, que havia tomado posse apenas 40 dias antes.

O filme foi posteriormente submetido a mais de dois anos do que Moura descreveu como “censura”. Ele enfrentou atrasos burocráticos incomuns por parte da agência governamental para o cinema, a Ancine, que vieram em meio a declarações incessantes das autoridades do governo Bolsonaro de que a cultura do país deveria ser libertada de uma “ditadura esquerdista”.

Em meio a esta ofensiva de direita, a distribuidora do filme, Paris Filmes, adiarou indefinidamente sua estreia, citando considerações financeiras não especificadas. Marighella parecia enfrentar uma mistura de censura política e econômica.

Os ataques da direita brasileira ao filme, que continuou a ser exibido e a receber prêmios no exterior, aumentou seu interesse entre aqueles que se opõem ao governo do presidente fascistoide Jair Bolsonaro e a seus elogios à ditadura militar de 1964-85, contra a qual Marighella morreu lutando.

Quando o filme finalmente estreou em 4 de novembro, ele rapidamente obteve a maior renda com bilheteria do Brasil, à frente de arrasa-quarteirões de Hollywood, como o filme Eternos. Esta é uma conquista rara para um filme brasileiro, mesmo considerando que o elenco de Marighella inclui estrelas famosas de novelas brasileiras, e no papel principal está um dos mais populares músicos brasileiros contemporâneos, Seu Jorge. Outro testemunho de seu amplo apelo foi oferecido por notícias de protestos online em cidades pobres habitadas pela classe trabalhadora na periferia do Rio de Janeiro, onde os cinemas não exibiam o filme, o que finalmente levou a um aumento das exibições.

Este contexto político contemporâneo torna uma avaliação sóbria do filme ainda mais necessária. E, falando de forma franca, o filme fica terrivelmente aquém de qualquer retrato sério da vida e do período histórico em que viveu Marighella, sem falar de uma perspectiva para os desafios atuais enfrentados por seu vasto público.

Seu Jorge em Marighella (2019)

Como declarado repetidamente por seu diretor, Wagner Moura, o filme é dedicado àqueles que “resistiram” naquela época e “resistem” hoje. A primeira e óbvia pergunta é: por que a “resistência” de Marighella não teve sucesso e foi eliminada pelos militares brasileiros, apoiados pelos EUA, em poucos anos? E a pergunta seguinte e igualmente óbvia seria: que lições devem ser tiradas dessa experiência por aqueles que hoje se opõem à extrema-direita?

Estas questões não são sequer abordadas pelo filme, apesar da linguagem aparentemente radical empregada por Moura em suas entrevistas e declarações à imprensa.

O filme é baseado na biografia Marighella, o guerrilheiro que incendiou o mundo, do jornalista Mário Magalhães, escrita em 2012. Com mais de 700 páginas e baseado em 276 entrevistas, o livro de Magalhães retrata de forma abrangente toda a vida de Marighella. Ele é também significativo por ser o primeiro a apresentar o testemunho de um agente que participou do assassinato de Marighella, fornecendo a primeira evidência direta de que Marighella não estava armado e não resistiu à prisão, como foi alegado pelo governo na época para justificar seu assassinato, uma prática nunca abandonada pela atual polícia “democrática” no Brasil.

A escolha de Moura de se concentrar apenas no período de guerrilha de Marighella, nos últimos dois anos de sua vida, leva a uma postura geralmente condescendente e moralista tanto em relação ao sujeito histórico quanto em relação ao espectador. Essa postura, que Moura considera ser a força emocional e moral do filme, desempenha um papel pernicioso, com consequências políticas claras.

Marighella, o PCB e o golpe de 1964

Marighella foi uma figura histórica extraordinária em muitos aspectos. Sua mãe era filha de escravos sudaneses conhecidos como “malês”, que em 1835 lideraram a maior revolta urbana de escravos da história do Brasil no estado natal de Marighella, a Bahia. Seu pai era um metalúrgico italiano da Emília-Romanha, cujos compatriotas eram sistematicamente rejeitados pelos patrões brasileiros como “encrenqueiros”.

Ingressando no Partido Comunista como estudante de engenharia em 1936 aos 25 anos de idade, ele enfrentou a ilegalidade sob três regimes políticos sucessivos e foi preso e torturado por dois deles. Foi eleito para a Assembleia Constituinte de 1946, durante os dois únicos anos de trabalho legal do PCB entre 1937 e 1985, e um dos líderes da histórica “greve dos trezentos mil” em São Paulo em 1953, que desafiou a legislação anti greve da época e forçou um aumento salarial de 32% em cinco ramos industriais.

O ano de 1964 culminou uma crise prolongada do capitalismo brasileiro que havia se desenvolvido durante anos, em meio ao declínio da expansão econômico do pós-guerra, a crescente atividade grevista nos países imperialistas e a intensificação das lutas anticoloniais.

Em 1964, o Presidente João Goulart intensificou seus esforços para realizar suas chamadas “reformas de base”, que incluíam uma reforma agrária, limites à especulação imobiliária urbana, aumento de créditos a pequenos negócios e investimentos em educação, restrições às remessas de lucros de empresas multinacionais e a legalização do Partido Comunista.

Embora de caráter inteiramente nacionalista-burguês – e espelhando reformas similares implementadas nos vizinhos Chile e Bolívia nos anos anteriores, assim como as políticas nacionalistas aplicadas pelo ex-presidente brasileiro Getúlio Vargas – as reformas Goulart foram cada vez mais consideradas intoleráveis pelo imperialismo americano e por uma seção decisiva da classe dominante brasileira. Sua recusa em se alinhar incondicionalmente com as políticas anticomunistas de Washington aumentou os temores dentro dos círculos dominantes de que Goulart seria incapaz de controlar a classe trabalhadora, que estava crescendo rapidamente.

Em tal contexto, o PCB se recusou absolutamente a organizar a classe trabalhadora em oposição à burguesia, ao invés disso confiando em Goulart e nos próprios militares para combater a oposição de direita e pró-imperialista. Quando a ofensiva golpista de 1964 foi lançada das montanhas ao redor do Rio de Janeiro, Goulart e o PCB foram pegos de surpresa pela unidade entre os militares. Ele foi evacuado do Rio por alguns poucos oficiais legalistas e levado para o Uruguai.

Apesar da ameaça que uma nova ditadura representava para seus próprios membros, o PCB estava seguindo a linha ditada internacionalmente pela burocracia contrarrevolucionária stalinista soviética, cuja única preocupação desde os anos 1930 era a autopreservação às custas da revolução internacional. Ela temia corretamente que uma revolução bem sucedida no exterior desencadeasse uma nova onda de oposição revolucionária da classe trabalhadora dentro da própria União Soviética, e assim enfraquecesse seu controle sobre a economia semi-autárquica soviética, que era a origem de seus privilégios.

A linha ditada por Moscou era a da “frente popular”, ou seja, a unidade com a burguesia nacional, em país após país. No Brasil, tal política havia se expressado na década de 1930 sob a ditadura corporativista do “Estado Novo”, de Getúlio Vargas, que era apoiada pelo PCB como uma frente popular “antifascista”. Esse apoio foi mantido mesmo enquanto os principais quadros do PCB, incluindo um Marighella em ascensão no partido, eram torturado nas prisões do Estado Novo, e Vargas deportava Olga Prestes, a esposa do líder do PCB Luís Carlos Prestes, que havia nascido na Alemanha e estava grávida, para o Terceiro Reich, onde ela foi assassinada no campo de extermínio de Bernburg.

O PCB manteve sua lealdade ao Partido Trabalhista Brasileiro, fundado por Vargas e depois liderado por Goulart, mesmo após o golpe de 1964. O PCB apoiou a “Frente Ampla” de Goulart com o ex-presidente Juscelino Kubitschek e o antigo arquirrival político de Vargas, o governador do Rio de Janeiro, Carlos Lacerda, que havia apoiado o golpe antes de ser ele mesmo banido pelo regime militar.

Diante de uma catástrofe política e de uma repressão crescente à classe trabalhadora e aos sindicatos, a liderança do PCB, incluindo Prestes, se opôs a qualquer crítica a sua postura em relação a Goulart e à frente ampla.

Os críticos incluíam Marighella e outros defensores da guerrilha de inspiração maoista e castrista. Sua maior discordância com Prestes era que a luta armada com tática guerrilheira deveria ter sido iniciada antes de 1964. A burocracia esclerosada em torno de Prestes considerou toda crítica intolerável e tomou medidas para expulsar a oposição. Por sua vez, em grande medida, a oposição ignorava a base de massas do PCB na classe trabalhadora e nunca foi capaz de fornecer uma alternativa à linha de frente popular do partido.

Como o filme de Moura deixa claro, Marighella era consideravelmente mais velho que os estudantes radicalizados que estavam sendo atraídos para a guerrilha no Brasil nos anos 1960, muitos dos quais pagaram com suas vidas por entrarem em um confronto extremamente desigual com os militares brasileiros, que eram apoiados pelos EUA. No entanto, suas décadas de treinamento sob o PCB lutando pela teoria etapista do stalinismo o fizeram organicamente incapaz de oferecer qualquer alternativa ou direção política, para além de algumas táticas bastante rudimentares para a “luta armada”.

O golpe de 1964 colocou com a máxima urgência a necessidade de construção de um novo partido revolucionário da classe trabalhadora, baseado na Teoria da Revolução Permanente de Trotsky. A decisão da burguesia brasileira de remover Goulart por medo da oposição da classe trabalhadora foi a demonstração mais clara possível de que ela temia mais o socialismo do que se opunha ao saque dos recursos nacionais pelas potências imperialistas. As tarefas democrático-burguesas de democracia, desenvolvimento nacional e independência do imperialismo só poderiam ser alcançadas sob a liderança da classe trabalhadora, derrubando a burguesia e começando a implementar suas próprias medidas socialistas, enquanto ao mesmo tempo buscasse estender sua revolução internacionalmente.

Os relatos de Magalhães e de outros autores sobre os conflitos internos do PCB demonstram que Marighella tinha sido um dos principais combatente contra o verdadeiro marxismo no partido, liderando a luta contra qualquer posição percebida como “trotskismo”, principalmente a Teoria da Revolução Permanente e as críticas à frente popular stalinista.

Um dos principais episódios de sua ascensão no aparato partidário havia sido a supressão do questionamento da política de frente popular e de subordinação a Vargas entre os dirigentes paulistas do PCB.

Joaquim Câmara Ferreira, que viria depois a colaborar com Marighella na guerrilha, relatou ter sido pessoalmente encarregado da execução do dirigente paulista do PCB Hermínio Sacchetta, que estava liderando as críticas da Frente Popular stalinista com Vargas. Ferreira recusou-se a executar o assassinato, e Sacchetta tornou-se mais tarde o principal líder do movimento trotskista no Brasil durante a Segunda Guerra Mundial.

Contrariado pela sobrevivência de Sacchetta, o PCB o expôs como membro do partido em uma transmissão de rádio dedicada a denunciar os “trotskistas”, fazendo com que na prática ele se tornasse um alvo das forças de segurança, dos fascistas ou de outros membros do PCB menos hesitantes. Apesar da sobrevivência física de Sacchetta, foi creditado a Marighella ter “abatido” políticamente a fração de Sacchetta dentro do partido.

Fiel à sua formação stalinista, Marighella e seus colaboradores nunca se opuseram à teoria stalinista de que o Brasil deveria passar por uma revolução democrático-burguesa liderada por setores burgueses e pequeno-burgueses nacionalistas, e, principalmente, que a classe trabalhadora deveria ser subordinada a esse movimento. Em particular, ao abordar a luta contra a direita fascistoide e a ditadura, Marighella tomava a política de frente popular como seu ponto de partida. Em seu confronto com a camarilha de Prestes, Marighella permaneceu atrelado à perspectiva desenvolvida pelo PCB pela primeira vez na década de 1920, de que o Brasil precisava de “seu próprio Kuomintang”, ou seja, um partido nacionalista burguês ao qual a classe trabalhadora deveria ser subordinada. O PCB procuraria incansavelmente tal partido no Partido Trabalhista Brasileiro e em suas facções.

Não obstante sua fraseologia radical sobre “pegar em armas” e “revolução”, Marighella permaneceu fiel a esta perspectiva fundamental do PCB. E à medida em que ficava mais frustrado com a covardia da burguesia nacional reformista encarnada por Goulart e seus serviçais na direção do PCB, Marighella também passou à hostilidade e desprezo pela a classe trabalhadora. Em seu “Mini-manual do guerrilheiro urbano”, lido em todo o mundo, a organização da classe trabalhadora está inteiramente subordinada a auxiliar a guerrilha rural. Mesmo as greves dos trabalhadores são vistas de um ponto de vista estritamente tático-militar, como uma cobertura útil para emboscar as forças de segurança.

Por todo o continente, a experiência da guerrilha já estava se mostrando desastrosa. Pouco antes da adesão de Marighella à guerrilha e expulsão do PCB, o principal proponente e modelo das guerrilhas na América Latina, Che Guevara, foi assassinado pelo exército boliviano apoiado pelos EUA enquanto tentava “replicar” a Revolução Cubana naquele país. As ações da Ação Libertadora Nacional (ALN) de Marighella não teriam melhor sorte. O grupo foi exterminado pelo exército e finalmente dissolvido em 1973, após retirar-se para o centro geográfico do Brasil, o vale do Araguaia. Não encontrando apoio camponês para um “conflito prolongado” com a ditadura, a ALN só conseguiu isolar-se ainda mais da classe trabalhadora.

Os custos políticos do giro à guerrilha foram muito além das trágicas e brutais mortes de Marighella e outros combatentes. Tal giro contribuiu para o isolamento de setores radicalizados e abnegados de estudantes, intelectuais e dos próprios trabalhadores da classe trabalhadora como um todo. E enquanto o PCB como organização foi destruído pela ditadura, seu objetivo fundamental de subordinar a classe trabalhadora à burguesia através do aparato sindical pôde apenas ser fortalecido por atos armados heroicos nos quais os trabalhadores foram reduzidos ao status de espectadores.

Quando a classe trabalhadora voltou a irromper na cena política nacional na segunda metade dos anos 70, suas fileiras haviam sido ampliadas e fortalecidas pelo impulso de industrialização da ditadura, e uma nova geração de líderes sindicais daria nova roupagem à antiga subordinação da PCB à burguesia e sua lealdade à democracia burguesa. Seu principal representante seria o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o pragmático burocrata sindical metalúrgico que lideraria a criação do Partido dos Trabalhadores (PT) em 1980 com base em um repúdio explícito ao marxismo e à revolução socialista, antes de ser eleito para a presidência em 2002.

O Marighella de Wagner Moura

A visão de Wagner Moura sobre o complexo ambiente político que criou Carlos Marighella é intelectualmente anêmica, para dizer o mínimo.

Tem sido amplamente argumentado nos círculos associados à política de esquerda e à oposição a Bolsonaro no Brasil que o filme é corajoso por enfrentar a questão da ditadura e dizer a verdade sobre uma figura histórica demonizada pela classe dominante como um assassino em série sedento de sangue por quase 50 anos.

Carlos Marighella indica suas feridas em 1964

É verdade que o filme tem seu ponto forte na exposição dos crimes da ditadura, incluindo seus esforços para demonizar a ALN e outraos grupos guerrilheiros, e seu desespero para suprimir qualquer simpatia gerada pelos atos de oposição à junta militar. É colocada grande ênfase nos esforços do chefe do DOPS, delegado Lúcio (Bruno Gagliasso) para suprimir os relatos na imprensa sobre o conteúdo político das ações da guerrilha, enquanto a ditadura retratava Marighella como um assassino diabólico e “inimigo público número um”, ao mesmo tempo criminalizando qualquer simpatia pelo socialismo.

Para um público amplo, expor estes crimes é importante em um momento em que as classes dominantes do mundo inteiro se voltam para a reabilitação dos piores crimes do século XX – o nazismo e seus colaboradores na Alemanha e na França, o franquismo na Espanha e, naturalmente, a ditadura militar brasileira por Bolsonaro.

Bruno Gagliasso em Marighella (2019)

Dito isto, a capacidade do filme de fornecer uma perspectiva para seu público é seriamente prejudicada pela abordagem politicamente falida de Marighella adotada por Wagner Moura, que se transforma em uma glorificação dos piores aspectos de sua confusão política.

O enredo do filme é prefaciado por um breve texto escrito acompanhado de imagens da época do golpe de 1964 afirmando que enquanto vários grupos, de sindicatos a organizações camponesas, resistiram ao regime, foram “especialmente os estudantes” que “perceberam” que a ditadura só poderia ser combatida com armas – no contexto do filme, através da guerrilha e não de uma revolução operária. O golpe de 1964 é tomado como um fato, não merecendo nenhuma outra consideração além do relato dos crimes a que deu origem. Como se deu e o que pretendeu realizar é irrelevante.

O foco do filme são as ações espetaculares da guerrilha: a captura de um arsenal de um trem na cena de abertura; assaltos a bancos; o assassinato do adido militar americano Charles Chandler e o sequestro do embaixador americano Charles Elbrick. Sempre que um contexto maior é apresentado, como os confrontos de Marighella com a liderança do PCB ou o apoio internacional que ele recebeu de importantes intelectuais europeus como Jean-Paul Sartre, as cenas são inteiramente focadas na moral pessoal e na coragem de Marighella. O PCB, o partido ao qual ele pertenceu por mais de 30 anos e que exerceu uma influência tão poderosa sobre milhões de brasileiros, é reduzido à figura do burocrata Jorge (Herson Capri), um amálgama de diferentes figuras históricas, que é tratado com desdém.

Seu Jorge e Adriana Esteves em Marighella (2019)

É preciso dizer que há mais em jogo no confronto unidimensional entre guerrilheiros “corajosos” e burocratas e torturadores “covardes,” que envolve as frenéticas cenas de ação do filme, do que banalidade e superficialidade.

A defesa banal da “democracia” é acompanhada por uma promoção ostensiva do nacionalismo e patriotismo brasileiros. Ela chega ao ponto de retratar vítimas de tortura gritando que eles são “brasileiros f---s”, ao contrário de seus torturadores pró-imperialistas. Ao final do filme, os espectadores são confrontados com a mãe de Marighella (interpretada no filme por sua filha real), reagindo à notícia de sua morte dizendo que ele era um “verdadeiro brasileiro”. Os créditos do filme são seguidos por uma cena dos atores berrando o hino nacional durante uma sessão de aquecimento, outra forma ostensiva de reafirmar a mensagem de que os guerrilheiros eram os “verdadeiros patriotas”.

Até mesmo Lúcio, que é principalmente uma referência ao chefe do DOPS Sérgio Paranhos Fleury, é retratado como um nacionalista confrontando as autoridades dos EUA sobre as melhores táticas para aniquilar a oposição política. Moura tem dito repetidamente que se sente particularmente orgulhoso de seu retrato de Fleury, argumentando de forma um tanto defensiva que isso acrescenta “complexidade” ao filme, mostrando que Lúcio também “achava que estava fazendo o melhor pelo seu país”, ou seja, ele não era simplesmente um fantoche dos EUA.

Esta abordagem reflete em grande medida um amplo giro à direita de setores da classe média alta que em um período anterior se identificavam com a oposição ao imperialismo e à ditadura, mas agora se opõem ao presidente fascistoide Bolsonaro devido ao que percebem como danos à política externa do Brasil e, por extensão, aos interesses das principais empresas brasileiras. Sua perspectiva é resumida na promessa da campanha de Lula de “Fazer o Brasil Grande Novamente”.

O impulso geral do filme é uma repetição, sob condições políticas internacionais muito mais perigosas, da própria subordinação do PCB e de Marighella à burguesia nacional. Esta perspectiva só pode resultar em desastres ainda piores, em um momento em que as grandes potências capitalistas impõem uma austeridade sem precedentes, constroem estados policiais e correm para se rearmar, mesmo enquanto milhões morrem devido à propagação descontrolada da COVID-19.

A verdadeira oposição à extrema direita, à pobreza e à ameaça da ditadura no Brasil e internacionalmente só pode ser baseada em uma perspectiva socialista e internacionalista, perspectiva à qual a ideologia stalinista que Marighella defendia, inclusive durante seu período de guerrilha, se opôs ferozmente. Sua inegável coragem pessoal e sua trágica morte, como as de tantos outros que adentraram o beco sem saída político da guerrilha, não podem esconder as lições políticas decisivas das derrotas sofridas pelos trabalhadores no Brasil e na América Latina como um todo há meio século.

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