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Capital chileno e internacional elogiam gabinete escolhido por Boric

Publicado originalmente em 4 de fevereiro de 2022

O presidente eleito e líder da Frente Ampla, Gabriel Boric, que toma posse em 11 de março, garantiu à elite financeira e empresarial que seu governo se responsabilizará por suas necessidades. A seleção do atual chefe do Banco Central do Chile como seu ministro das Finanças foi o mais recente abalo contra as ilusões populares de que a nova administração pseudoesquerdista e stalinista, “Apruebo Dignidad”, servirá às massas.

Na última semana de janeiro, Boric anunciou a seleção de seu gabinete a uma mídia corporativa nacional e internacional entusiasmada e sob a aprovação dos mercados. O peso chileno subiu em relação ao dólar americano e o indicador da bolsa de valores do Chile, IPSA, subiu ao seu ponto mais alto em dois meses.

Enquanto a imprensa liberal falava sobre o caráter “progressivo” do novo governo chileno (com o Guardian escrevendo que Boric havia selecionado pela “primeira vez em qualquer parte das Américas uma equipe ministerial dominada por mulheres”, refletindo “seu objetivo de construir um país mais justo, mais inclusivo”), a imprensa financeira apontou os verdadeiros aspectos da escolha de gabinete.

Presidente Piñera se reúne com presidente-eleito, Gabriel Boric, no palácio La Moneda (Crédito: Marcelo Segura)

Jorge Selaive, economista-chefe do Scotiabank Chile, foi citado no Financial Times dizendo que “parte do risco político que afetou a moeda chilena desde os protestos (de 2019) recuou com o anúncio do gabinete na sexta-feira”.

“Nomear Mario Marcel como ministro das Finanças é um sinal muito bom de estabilidade econômica, visto positivamente pelos mercados”, disse Miguel Angel Lopez, da Universidade do Chile, à Bloomberg.

Marcel, do Partido Socialista, é um dos vários membros do gabinete de Boric que pertencem a centroesquerda, que governou por mais de duas das últimas três décadas de governo civil e foi reduzida ao último lugar nas eleições constitucionais, do congresso e presidenciais dos últimos três anos.

“Marcel foi elogiado pela forma como orientou a resposta do banco central durante o período de agitação social, e da pandemia de COVID-19 que se seguiu...”, acrescentou o Financial Times.

A partir de março de 2020, com a disseminação do coronavírus, o chefe do Banco Central priorizou uma agenda pró-empresarial de baixas taxas de juros, oferecendo bilhões em liquidez e compra de ativos, e fornecendo garantias de empréstimo que equivaliam a 15% do PIB ‒ “muito acima do que tem sido feito em outros países latino-americanos”, disse Marcel durante uma audiência no Senado no ano passado.

Em contraste, os auxílios do governo para a população atingida pela pobreza foram tão insignificantes que o vírus se espalhou continuamente nas superlotadas comunidades de classe trabalhadora, e dezenas de milhares de famílias de migrantes empobrecidas enfrentaram a crise com ameaças crescentes de violência xenofóbica e deportação.

A partir de 30 de janeiro, o número cumulativo de infecções confirmadas e prováveis pela COVID-19 era de 2.520.224 casos e 50.700 mortes, com o surto tendo impacto predominantemente em pessoas entre 18 e 64 anos de idade, a população em idade de trabalho.

A crise obrigou a classe média e seções da classe trabalhadora a utilizar suas economias da previdência privada. O PIB do Chile cresceu cerca de 12% em 2021 somente por causa desses saques, estimados em US$50 bilhões, bem como por um breve estímulo fiscal.

Setores críticos da economia voltada para a exportação foram mantidos operacionais apesar da expansão da variante Delta e, hoje, da Ômicron. Somente na semana passada, a burocracia sindical revelou que mais de 700 trabalhadores haviam testado positivo para COVID-19 na mina de Escondida da BHP (a maior mina de cobre do mundo), afetando quase um terço da força de trabalho. O que o sindicato não informou é que ele auxiliou e incentivou a administração e o governo a manter a indústria de mineração aberta durante toda a pandemia.

Essa abordagem criminosa de “imunidade de rebanho” defendida pelo presidente Sebastian Piñera, em associação com os sindicatos dominados pela centroesquerda e pseudoesquerda stalinista parlamentar ‒ será agora levada adiante por Boric, com a distinção de que ele irá integrar mais completamente essas organizações corporativistas em sua administração.

“A última coisa que queremos é alcançar medidas tão restritivas como as que vivemos em 2020”, disse ele ao “Tolerancia Cero” da CNN Chile em 25 de janeiro, acrescentando que as escolas “devem ser as primeiras a abrir e as últimas a fechar... Nós vamos conversar com a Associação de Professores e todas as suas organizações, a fim de facilitar o retorno às aulas...”.

Boric venceu o segundo turno das eleições presidenciais em 19 de dezembro passado com cerca de 56% dos votos em uma disputa que contou com a maior participação dos eleitores na história do Chile. Isso ocorreu não por causa, mas apesar da centroesquerda ter lançado uma campanha para promover Boric como a única alternativa “democrática” a José Antonio Kast, o candidato fascista da Frente Social Cristã. Apesar de setores da sua base em declínio terem acabado por apoiar Boric, jovens e trabalhadores saíram em massa para votar nele, com números significativos se afastando de todo o processo e ficando em casa.

A Apruebo Dignidad entrou em discussões secretas com a tradicional centroesquerda profundamente impopular ‒ o Partido pela Democracia (PPD), o Partido Socialista (PS), os democratas-cristãos e os radicais ‒ antes do segundo turno, para sinalizar às bolsas de valores e às potências imperialistas que seu governo seria um governo de moderação. Ele deslocou o eixo de sua plataforma para a direita durante a campanha, escolhendo fórmulas sobre “segurança”, “imigrantes ilegais” e outras questões do arsenal de seu oponente fascista.

Boric continuou a se deslocar para a direita, declarando a um comício em Santiago que ele criaria pontes com a oposição de direita enquanto mantinha várias discussões com grandes empresas, prometendo gradualismo e responsabilidade fiscal.

Como o Syriza na Grécia e o Podemos na Espanha, a frente pseudoesquerdista e stalinista chilena possui a tarefa de dissipar a oposição da classe trabalhadora e da juventude ao capitalismo e proteger um estado burguês em crise.

A coalizão eleitoral Apruebo Dignidad foi formada no ano passado para entrar na disputa presidencial com os mesmos cálculos políticos que a tão alardeada Convenção Constitucional. A convenção surgiu do acordo de paz de Unidade Nacional realizado entre o governo de direita do presidente bilionário, Piñera, a centroesquerda tradicional e setores da coalizão Frente Ampla em meio aos protestos anticapitalistas massivos no final de 2019.

Aterrorizados que as enormes manifestações escapassem de seu controle, eles emprestaram ao abalado governo Piñera seu apoio para transformar os protestos anticapitalistas em apelos à mudança da constituição autoritária do país. Seguindo essa linha, a Apruebo Dignidad declarou que sua agenda era acabar com as políticas econômicas de livre mercado impostas durante o governo militar pelo general Augusto Pinochet, e mantidas pela casta política civil que tomou o poder em 1991.

“Se o Chile foi o berço do neoliberalismo, ele também será seu túmulo”, propôs Boric prometendo substituir o sistema privatizado de pensões por uma aposentadoria básica universal e criar um sistema universal de saúde e educação, renda “digna”, igualdade de gênero e proteção ambiental, entre outras medidas.

O ponto crucial do argumento da esquerda chilena é que o “neoliberalismo” de Pinochet e não o capitalismo em geral deve ser responsável pelos níveis obscenos de desigualdade social, pobreza, nepotismo e corrupção, e violência de Estado policial.

É uma reformulação da teoria nacionalista reacionária da revolução em duas etapas, que postula que o papel do stalinismo em aliança com a classe média e a “burguesia progressiva” é democratizar o Estado e a república através do processo parlamentar burguês. A política de frente popular baseada nessa teoria levou tragicamente à amarga derrota da classe trabalhadora no Chile, onde o governo de coalizão Unidade Popular de Salvador Allende preparou o caminho para o golpe fascista-militar apoiado pelos EUA em 11 de setembro de 1973.

Há 50 anos, o Partido Comunista, pelo menos no Chile, ainda monopolizava a lealdade da classe trabalhadora. A grande mentira de que os stalinistas soviéticos representavam a continuidade política da revolução de outubro de 1917 continuava existindo e fornecia apoio político e ideológico a vários tipos de grupos nacionalistas reformistas, burgueses e pequenos burgueses em toda a América Latina, permitindo que se movimentassem entre os regimes stalinistas e o imperialismo americano.

Essa estratégia chegou ao fim nos anos 1980 com a globalização da produção capitalista. Enquanto isso, as organizações que dominavam o movimento operário abandoaram a retórica revolucionária e do reformismo social. O golpe final veio com a dissolução da União Soviética em 1991 e a restauração do capitalismo na Rússia enquanto as chamadas forças políticas da chamada esquerda em países burgueses oprimidos e semicoloniais como o Chile deixaram de ser amparadas por qualquer agência intermediária ao imperialismo.

Antes como tragédia, hoje como farsa, o camaleão Boric não conseguiu sustentar sua retórica reformista sequer até tomar posse em condições em que uma profunda crise econômica se aproxima. Essa estratégia traiçoeira só pode fortalecer as forças de extrema direita que, durante as últimas eleições, reuniram-se em torno da candidatura do fascista Kast. Ao mesmo tempo, ela colocará o novo governo cada vez mais em um confronto direto com a classe trabalhadora chilena.

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