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Governo de pseudoesquerda chileno marca 50 anos do golpe de Pinochet tranquilizando extrema direita

Publicado originalmente em 12 de setembro de 2023

O governo de pseudoesquerda do Chile, liderado pelo presidente Gabriel Boric, marcou o 50º aniversário do sangrento golpe de 1973 apoiado pela CIA de 11 de setembro com uma cerimônia no palácio presidencial La Moneda. No dia do golpe, que derrubou o governo eleito do presidente Salvador Allende em coalizão com a Unidade Popular, o local foi bombardeado por tanques e caças e matou Allende.

Presidente chileno, Gabriel Boric, com presidente mexicano, Andrés Manuel Lopéz Obrador, palácio La Moneda, Santiago. [Photo: Presidencia de Chile]

Vários chefes de estado latino-americanos identificados com a chamada 'Maré Rosa' participaram da cerimônia, incluindo Andrés Manuel López Obrador, do México, Gustavo Petro, da Colômbia, e Luis Arce, da Bolívia. Tanto o atual presidente do Uruguai, Luis Lacalle Pou, quanto seu antecessor, o ex-Tupamaro José Mujica, estavam presentes, juntamente com o primeiro-ministro do Partido Socialista de Portugal, Antonio Costa.

Washington, que estava profundamente envolvido na preparação do golpe e no apoio ao banho de sangue após seu início, enviou apenas Christopher Dodd, o ex-senador democrata e lobista identificado com o resgate de Wall Street, que foi escolhido por Biden no ano passado para servir como seu “conselheiro especial para as Américas”.

A cerimônia foi notável pelo boicote de toda a direita chilena, cujos representantes emitiram declarações justificando o golpe. Enquanto isso, uma cerimônia organizada pela câmara baixa do parlamento chileno para homenagear Allende no 50º aniversário de sua morte foi interrompida por membros da UDI (União Democrática Independente), que tentaram fazer declarações semelhantes justificando a derrubada militar liderada pelo general Augusto Pinochet. Os demais partidos de direita boicotaram a sessão.

Em uma ação provocativa orquestrada pelo governo de Boric, as forças especiais dos Carabineros foram mobilizadas no domingo, 10, por ocasião da tradicional “marcha dos caídos” até o Cemitério Geral para homenagear as vítimas da ditadura militar que durou 17 anos no Chile.

“Os responsáveis por essa violência são adversários do governo”, declarou o subsecretário do Interior, Manuel Monsalve, que estava mais preocupado com o ferimento de três policiais do que com as centenas de manifestantes que tentaram se defender após serem alvo de gás lacrimogêneo e canhões de água.

No início da semana, o governo se reuniu com grupos de direitos humanos para informá-los de que a rota para o cemitério seria cercada por um perímetro policial onde somente grupos autorizados poderiam entrar. Foi descoberto que o objetivo da operação era proporcionar uma oportunidade para Boric aparecer com os parentes dos executados, assassinados e desaparecidos.

Para a própria cerimônia de 11 de setembro, outros 2 mil carabineros e forças especiais foram mobilizados, revelando o quanto à direita se deslocou o atual governo, composto pelo Partido Comunista stalinista, o pseudoesquerdista Frente Ampla e o Partido Socialista.

A administração Boric tem acomodado cada vez mais seu programa aos herdeiros políticos do regime de Pinochet, com a concepção do presidente de uma “visão compartilhada” no centro das comemorações do 50º aniversário.

Há dois anos, durante a campanha para as eleições presidenciais de 2021, o então candidato Boric disse: “Sr. [ex-presidente Sebastian] Piñera, o senhor foi avisado, será processado pelas graves violações de direitos humanos cometidas durante seu mandato”. Na sexta-feira passada, Boric estava convidando o ex-presidente a ir ao La Moneda para assinar um pacto dito “democrático” que comprometeria todas as partes a 'valorizar e cuidar da democracia e respeitar os direitos humanos de forma irrestrita'.

Piñera assinou, mas somente após estabelecer suas próprias condições. Especificamente, ele exigiu “respeito à Constituição e às leis, respeito ao Estado de Direito ... (e) nosso compromisso total e absoluto de condenar a violência, e a violência tem muitas faces: violência política, como a conhecemos em 18 de outubro de 2019, mas também crime organizado, tráfico de drogas, terrorismo …”.

Em outubro de 2019, Piñera declarou literalmente “guerra” às manifestações anticapitalistas em massa, decretando estado de emergência e enviando tropas às ruas pela primeira vez desde os 17 anos de ditadura fascista-militar do general Pinochet.

Nos meses que se seguiram, dezenas de pessoas foram mortas pelas forças repressivas, e 3.800 foram hospitalizadas devido a ferimentos graves causados por balas, bombas de gás lacrimogêneo e agressões. Dos 11.389 homens, mulheres, adolescentes e crianças detidos, 2.146 relataram algum tipo de violência sexual, tortura e outros tratamentos cruéis, desumanos e degradantes e uso excessivo da força.

Em 2021, a Anistia Internacional revelou que, das 10.813 denúncias de violações de direitos humanos apresentadas ao Ministério Público, apenas 14 casos resultaram em condenações contra agentes do Estado. A Ouvidoria da Infância informou que, das mais de 3.470 crianças e adolescentes que sofreram violações de direitos humanos, apenas dois casos resultaram em condenações.

Isso está no passado para Boric, que concordou com Piñera que era necessário condenar a violência em geral. Boric disse que “A violência deve ser deixada de fora das ferramentas democráticas”, equiparando assim com o assassinato e a tortura em massa realizados pelas forças repressivas, armadas até os dentes para defender o capitalismo as lutas legítimas de milhões de estudantes e trabalhadores que buscavam o fim da extrema desigualdade social.

Em um sinal de conciliação aos partidos de ultradireita e francamente fascistas contrários à assinatura de qualquer pacto que não culpasse explicitamente a Unidade Popular pelo golpe, Boric disse que “vamos nos esforçar para que todos nós, sem objeções, mas por uma convicção para o futuro em relação ao bem-estar de nossa pátria, façamos o compromisso juntos de valorizar e cuidar da democracia e de respeitar os direitos humanos de forma irrestrita”.

O Pagina 12 informou que a remoção de Patricio Fernández como conselheiro para os eventos de comemoração em julho foi um ponto de virada para a direita “que enfatiza o espírito com o qual ele (Fernández) pretendia imbuir a data”.

Em uma entrevista na televisão, o “socialista independente” Fernández insinuou que Pinochet e o comando militar agiram com boas intenções ao executar o golpe. “Acredito que o principal desafio que estamos enfrentando neste momento é que a história poderá continuar a discussão de por que isso aconteceu ou quais foram as razões e motivações para o golpe de Estado. (...) O que poderíamos tentar concordar é que os eventos posteriores ao golpe são inaceitáveis em qualquer pacto civilizatório”, disse ele. Ele já havia feito declarações semelhantes anteriormente.

A Associação de Parentes de Detidos e Desaparecidos e a Associação de Parentes de Políticos Executados, ambas dominadas pelo Partido Comunista stalinista, e vários legisladores stalinistas exigiram sua renúncia. Porém, como bem observou o El País, Fernández estava apenas divulgando a linha oficial do governo – que inclui os stalinistas – que efetivamente exige a coexistência com a interpretação favorável da direita sobre o golpe.

A prontidão do governo em acomodar forças políticas profundamente autoritárias e antidemocráticas é gravíssima. A pseudoesquerda e os stalinistas fazem parte do time “capitalismo”, mas desempenham funções diferentes de acordo com uma divisão de trabalho política. Os stalinistas se apresentam como guardiões dos “direitos humanos” e criticam regularmente a direita, mas, quando o capitalismo é ameaçado, todos eles se alinham para o defender.

Um exemplo direto é o mais recente projeto de lei patrocinado pelo governo e aprovado em ambas as casas do congresso, criminalizando todas as formas de tomada de terras, inclusive pelos sem-teto; ocupações de escolas por estudantes universitários; ocupações de locais de trabalho e fábricas e ações indígenas mapuches reivindicando terras ancestrais. O projeto de lei não apenas impõe pesadas penas de prisão, mas também concede aos proprietários o direito de usar força letal em defesa da propriedade privada.

Conforme o WSWS observou, as ocupações de terra possuem um profundo significado no campo e nos centros urbanos. Elas se tornaram um dos pontos de confronto revolucionários na década de 1960 e no início da década de 1970, precisamente por causa da natureza oligárquica e reacionária da burguesia chilena e de sua incapacidade histórica de resolver até mesmo as demandas democráticas e sociais mais básicas. Hoje, Boric prepara justificativas “legais” para a repressão em antecipação a uma explosão revolucionária entorno da questão fundamental da moradia e da posse da terra. O estado de exceção permanente, que emprega os militares contra as populações mapuches marginalizadas que reivindicam terras ancestrais, faz parte disso.

A lei contra usurpação surge no desfecho de uma infinidade de outras leis de Estado policial também aprovadas pelos chamados legisladores de “esquerda”, incluindo uma licença para matar aos militares e à polícia e a concessão de imunidade legal retroativa contra processos judiciais – 10 policiais carabineiros já foram absolvidos em vários casos; expandir enormemente o arsenal da polícia militarizada dos Carabineros; ceder aos militares um papel cada vez maior nas funções de ordem pública; mobilizar os militares para proteger a “infraestrutura crítica” e permitir que as forças armadas e a polícia expulsem violentamente os refugiados que tentem atravessar as fronteiras do Peru e da Bolívia.

Em termos de política externa, o governo Boric emitiu uma declaração elogiosa agradecendo ao governo Biden pela desconfidencialização, no mês passado, de dois documentos da CIA de 8 e 11 de setembro, confirmando o que todos já sabiam: que a agência de inteligência manteve a Casa Branca informada sobre os preparativos e a execução do golpe. O governo chileno alegou que esse gesto – que deixa volumes de arquivos muito mais incriminatórios ainda trancados a sete chaves – “promove a busca pela verdade e reforça o compromisso de nossa nação com os valores democráticos”.

Que “valores democráticos”? Afinal de contas, o Chile é apenas um das dezenas de países que continuam sofrendo com a agressão do imperialismo americano, incluindo mudanças de regime, planos de assassinato, intervenções militares, invasões e guerras. Ainda assim, mesmo antes de assumir o cargo, o ex-estudante radical Gabriel Boric já sinalizava sua posição e falava em nome dos objetivos da política externa de Washington contra a Venezuela, a Nicarágua e Cuba na região. Desde que assumiu o cargo, Boric se alinhou fielmente ao esforço de guerra de Washington contra a Rússia.

No 50º aniversário do golpe de Estado, as massas chilenas são confrontadas com as mesmas condições políticas e econômicas fundamentais que deram origem a ele. As medidas policiais-estatais de Apruebo Dignidad estão se preparando para uma erupção da luta de classes e imensas convulsões sociais decorrentes da profunda crise da economia mundial e seu impacto no Chile.

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