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Israel provoca conflito diplomático com Brasil sobre Gaza e Hezbollah

Com a guerra genocida de Israel em Gaza escalando em meio a enormes protestos globais, uma série extraordinária de eventos aconteceu na semana passada no Brasil, aumentando as tensões diplomáticas entre o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (Partido dos Trabalhadores – PT) e Israel.

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva se encontrando com os brasileiros resgatados do cerco israelense contra Gaza [Photo: Ricardo Stuckert/@LulaOficial]

Esses eventos se desenvolveram enquanto os EUA e seus aliados no G7 ameaçavam diretamente o Irã com uma guerra por seu apoio ao Hamas e ao Hezbollah e, mais importantemente, suas crescentes relações econômicas e militares com a Rússia e a China. O Brasil e muitos países da América Latina possuem fortes relações econômicas com a China e, em menor grau, como a Rússia e o Irã, que recentemente ingressou junto com a Argentina e outros quatro países no BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) como parte da tentativa do bloco de construir um mundo “multipolar” em oposição à hegemonia americana.

As preocupações dos EUA com a presença da China, Rússia e Irã, assim como as “atividades do Hezbollah” na América Latina foram vocalizadas no início de outubro, logo após o início da guerra de Israel contra Gaza, pela Gen. Laura Richardson, chefe do Comando Sul dos EUA.

Em entrevista ao think tank Fundação para a Defesa das Democracias, ela denunciou “navios de guerra iranianos que … fizeram uma escala no Rio” em fevereiro e as visitas a vários países da América Latina no primeiro semestre do chanceler russo Sergei Lavrov e do presidente iraniano Ebrahim Raisi. Completando que a região está “insegura e instável”, a Gen. Richardson disse que “podemos fazer melhor neste momento vulnerável para manter afastados os competidores estratégicos que possuem intenções malignas”.

Nesse contexto, o governo de Israel, com o total apoio dos EUA, lançou uma provocativa ofensiva diplomática com o intuito de desestabilizar o governo Lula e pressioná-lo a se alinhar com sua guerra contra Gaza e aos preparativos de guerra dos EUA contra o Irã. Esses movimentos aconteceram depois de o Brasil tentar aprovar em outubro, quando presidia o conselho de segurança da ONU, uma resolução que defendeu uma pausa nos ataques de Israel para a formação de um corredor humanitário. Sem se referir ao suposto “direito de autodefesa” de Israel, a resolução foi vetada pelos EUA.

Ao longo de novembro, o governo Lula subiu as suas críticas aos ataques de Israel à Gaza. Porém, ao contrário dos presidentes pseudoesquerdistas da Colômbia, Gustavo Petro, e Chile, Gabriel Boric, que convocaram seus embaixadores, Lula limitou-se a equiparar as ações de Israel e Hezbollah, dizendo em 13 de novembro: “O Hamas cometeu um ato terrorista... Israel também está cometendo vários atos de terrorismo ao não levar em conta que as crianças não estão em guerra”. Lula também tem defendido a criação de um Estado palestino, porém sem se referir à necessidade de Israel deixar os territórios ocupados na guerra de 1967.

Como parte do esforço do governo israelense de angariar apoio internacional para a sua guerra em Gaza, seu embaixador no Brasil, Daniel Zonshine, reuniu-se em 8 de novembro com parlamentares de extrema direita e o ex-presidente fascistoide Jair Bolsonaro no Congresso brasileiro para mostrar supostas imagens do ataque do Hamas a Israel em 7 de outubro. Membros da base aliada do governo Lula não foram convidados para a reunião.

Segundo o jornalista internacional Jamil Chade, do site UOL, o ministério de relações exteriores do Brasil considerou o encontro “uma quebra grave de protocolo, uma intromissão na política doméstica e uma relação complicada com um personagem público que está inelegível”. Porém, Bolsonaro é mais do que um político inelegível. Além de ter sido derrotado na eleição presidencial do ano passado por Lula, ele foi recentemente indiciado por uma Comissão Parlamentar de Inquérito como o autor intelectual da tentativa de golpe de Estado em 8 de janeiro, quando seus apoiadores atacaram as sedes dos Três Poderes em Brasília.

O primeiro-ministro Benjamin Netanyahu considera Bolsonaro um aliado político próximo. Ao longo dos quatro anos de governo Bolsonaro (2019-2022), o Brasil aproximou-se enormemente de Israel sob Netanyahu e dos EUA sob Donald Trump. Depois de defender a transferência da embaixada brasileira de Tel Aviv para Jerusalém e reconhecer a soberania israelense nos territórios ocupados ilegalmente, o governo Bolsonaro apoiou o assassinato do general iraniano Qassem Suleimani pelos EUA.

A escolha do Congresso brasileiro para o encontro entre o embaixador israelense e Bolsonaro não poderia ter sido mais apropriada para os fins da extrema direita brasileira, de Israel e dos EUA. Parlamentares leais a Bolsonaro apresentaram em outubro projetos de lei que classificam o Hamas e o Hezbollah como terroristas e que equiparam o apoio a eles aos crimes de promoção do nazismo – uma comparação que Bolsonaro e a extrema direita brasileira têm feito repetidamente com o socialismo. Um dos projetos de lei também estabelece que o Brasil deve cortar relações diplomáticas e econômicas com os seus apoiadores, indiretamente alvejando o Irã.

Um outro evento que aumentou a tensão diplomática desde o início da guerra foi a demora para 34 brasileiros deixarem Gaza, o que aconteceu apenas no início desta semana. No mesmo dia do encontro com Bolsonaro, o embaixador israelense deu a primeira justificativa para essa demora, alegando que “A cota para sair da Faixa de Gaza é determinada pelo Egito”. Isso, por sua vez, foi desmentido pelo chanceler brasileiro Mauro Vieira, expondo as razões políticas da decisão de Israel para impedir que deixassem Gaza.

Como se o 8 de novembro não tivesse sido suficientemente turbulento, a Polícia Federal brasileira anunciou nesse mesmo dia a prisão temporária de dois suspeitos supostamente ligados ao Hezbollah de planejarem ataques terroristas no Brasil contra a comunidade judaica. Segundo o jornal Estado de S. Paulo, “A ação teve colaboração de autoridades americanas e israelenses”.

No X/Twitter, o governo Netanyahu comemorou as prisões, escrevendo: “os serviços de segurança brasileiros, juntamente com o Mossad e os seus parceiros na comunidade de segurança israelense, juntamente com outras agências de segurança internacionais, frustraram um ataque terrorista no Brasil, planejado pela organização terrorista Hezbollah, dirigida e financiada pelo Irã”.

Em resposta, o ministro da justiça brasileiro, Flávio Dino, disse que “Nenhum representante de governo estrangeiro pode pretender antecipar resultado de investigação conduzida pela Polícia Federal, ainda em andamento”. De fato, nos depoimentos dos presos à Polícia Federal, eles negaram qualquer ligação com o Hezbollah. O advogado de um deles ainda declarou que “Ele não sabia o que era Hezbollah ou Hamas”.

Além disso, uma série de dúvidas vocalizadas pela própria mídia burguesa brasileira emergiram por causa dessas prisões. Em primeiro lugar, não há motivos plausíveis para que o Hezbollah ou o Irã ameacem realizar um ataque terrorista no Brasil.

O Brasil possui uma comunidade libanesa maior do que a própria população de 6 milhões de pessoas do Líbano. Especialmente a partir da “guerra ao terror” dos EUA no início dos 2000, tem havido denúncias de envolvimento de libaneses-brasileiros em lavagem de dinheiro e de ligações com o tráfico de drogas – principalmente na região de tríplice fronteira entre Brasil, Argentina e Paraguai – para financiar as atividades do Hezbollah no Líbano. Nenhuma evidência concreta foi apresentada até agora para apoiar essas denúncias.

Em segundo lugar, não é o modus operandi do Hezbollah realizar ações fora do Líbano, muito menos ataques terroristas. Lembrados como um marco da suposta atividade terrorista na América Latina, os ataques à embaixada de Israel em 1992 e à Associação Mutual Israelita Argentina (AMIA) em 1994, ambos na Argentina, não foram reivindicados pelo Hezbollah. Na verdade, sua única atividade declarada no exterior foi na Síria, onde lutou contra o Estado Islâmico e as milícias ligadas à Al Qaeda apoiadas pelos EUA em apoio ao governo de Bashar al-Assad.

O Hezbollah é o produto direto da invasão israelense do sul do Líbano em 1982. Desde 1992, nas primeiras eleições após a guerra civil (1975-1990) no Líbano, ele tem sido uma das principais forças políticas do parlamento libanês e possui amplo um apoio entre os setores mais oprimidos da população xiita do país. Em 2000, Israel deixou o sul do Líbano, mas em 2006 ele lançou uma massiva invasão contra a região, apoiada pelos EUA, que terminou em um desastre para Israel e os EUA.

Tanto Washington quanto Israel veem o Hezbollah como um obstáculo aos seus interesses estratégicos, que eles querem eliminar do Líbano e facilitar uma futura ofensiva militar dos EUA contra o Irã. Para isso, os EUA consideram o Brasil e a América Latina um campo de batalha estratégico nesse processo.

Embora Lula tenha condenado as ações de Israel em Gaza como a “violência mais brutal e desumana contra pessoas inocentes” que já viu, seu governo não emitiu sequer um protesto formal contra as provocações do embaixador israelense, muito menos o expulsou do país.

Por trás dessa delicada abordagem diplomática está o medo de perturbar as relações não apenas com Israel, mas, mais importantemente, com seu principal e indispensável patrono, o imperialismo americano.

Desde que chegou ao poder, Lula tem afirmado que o governo do “Genocida Joe”, como o presidente americano tem sido denunciado em muitos protestos, representa um fator importante para a estabilidade democrática no Brasil e no mundo. Mais recentemente, ele elogiou Joe Biden como o presidente mais “pró-trabalhador” da história.

Significativamente, o roteiro dos eventos da semana passada no Brasil foi revelado num artigo publicado pela Fundação para a Defesa das Democracias no final de outubro. Intitulado “Ameaça Terrorista do Hezbollah na América Latina,” Emanuele Ottolenghi escreveu que “Os governos dos EUA e de Israel estão preocupados, com razão, que o Hezbollah – o mais antigo e bem armado agente do Irã – ... possa criar uma segunda frente no norte de Israel e aumentar a pressão sobre Israel e os EUA lançando ataques terroristas no exterior”.

Ele lembrou que “a América Latina é uma região particularmente preocupante nesse aspecto” porque “o Hezbollah não é considerado uma organização terrorista na maioria dos países”. Além de defender que “o governo Biden deve incentivar mais governos a considerar o Hezbollah como um grupo terrorista”, Ottolenghi enfatizou que “o governo dos EUA precisa ser proativo e partir para a ofensiva contra o Irã e as operações de soft power e hard power do Hezbollah na região”.

Mais significativamente, Ottolenghi escreveu que “Há uma mobilização radical em favor da causa palestina em toda a região, grande parte da qual é fomentada pela desinformação apoiada pelo Irã”. De fato, como parte de um movimento global de massas contra o genocídio em Gaza, protestos têm sido realizados semanalmente no Brasil e em muitos países latino-americanos.

Em meio às tensões diplomáticas com Israel e à pressão dos EUA para que o Brasil se alinhe aos seus planos de guerra contra o Irã e a China, o que o governo Lula e as elites dominantes da América Latina mais temem é que esse movimento se conecte com um movimento emergente da classe trabalhadora contra suas políticas de austeridade e sua abordagem criminosamente negligente em relação à pandemia ainda em curso.

Como o WSWS e o Comitê Internacional da Quarta Internacional têm insistido, a questão fundamental é oferecer às milhões de pessoas que têm participado de protestos semanais contra o genocídio de Israel uma perspectiva política baseada na classe trabalhadora. Conforme elaborado na declaração “O caminho a seguir na luta contra o genocídio em Gaza”, isso requer “a construção de uma direção política que tenha como objetivo a conquista do poder pela classe trabalhadora, a derrubada do capitalismo e do imperialismo e o estabelecimento do socialismo em escala mundial”.

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