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Cliff Slaughter: uma biografia política (1928-1963)

Parte 4

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Esta biografia política de Cliff Slaughter cobre o período entre 1928 e 1963. Uma segunda seção da biografia, de 1963 até sua morte, será publicada no final do ano.

Cliff Slaughter

O Lenin sobre a dialética de Slaughter

A mesma edição da Labour Review incluía a primeira parte de um ensaio de três partes escrito por Slaughter, intitulado “Na oficina da revolução: Cadernos filosóficos de Lenin”. Publicado posteriormente como uma brochura, com o título Lenin sobre a dialética, revelou-se o mais conhecido e mais influente dos trabalhos teóricos de Slaughter. O ensaio foi uma importante contribuição para esclarecer a relação entre o materialismo dialético e a análise dos fenômenos sociais e processos políticos. O significado desse ensaio, no contexto da luta contra o esforço do SWP para a reunificação com o pablismo, foi análogo ao da exposição da dialética materialista feita por Trotsky na luta de frações de 1939-40 dentro do Socialist Workers Party. Junto com Oportunismo e empirismo, escrito por Slaughter em março de 1963 e divulgado como uma declaração do Comitê Nacional da SLL, Lenin sobre a dialética cumpriu um papel importante na educação dos quadros do Comitê Internacional nos anos que se seguiram ao rompimento com o Socialist Workers Party.

Além disso, a alta estima que Slaughter tinha em todo o Comitê Internacional baseava-se, em grande medida, no estudo apreciativo de seus camaradas sobre esse trabalho.

A publicação de uma nova edição em inglês das Obras completas de Lenin em 1961, feita pelas editoras soviéticas, foi um importante evento político e intelectual. Esta edição incluía um novo volume, o número 38, que consistia em uma compilação substancial de notas feitas por Lenin no curso de seu estudo de obras-chave da filosofia. A mais importante dessas notas foi seu “Resumo da Ciência da lógica de Hegel” e seu “Resumo das Palestras sobre a história da filosofia de Hegel”. O Volume 38 também incluía um ensaio notável, “Sobre a questão da dialética”. Essas obras foram escritas em 1914–15, depois da chegada de Lenin à Suíça após a eclosão da Primeira Guerra Mundial.

As anotações de Lenin sobre Hegel não eram totalmente desconhecidas fora da União Soviética antes da publicação da nova edição das Obras completas de Lenin. Uma edição em francês dos Cahiers philosophiques de Lenin havia sido publicada em 1955 e foi amplamente comentada.

No entanto, a publicação em inglês dos Cadernos expandiu enormemente seu número de leitores e teve um impacto imenso na apreciação política e acadêmica de Lenin. Essas notas estabeleceram claramente que Lenin era um pensador de imensa profundidade. As tentativas de retratá-lo como um mero realpolitiker habilidoso, que respondia intuitivamente às oportunidades à medida que surgiam, foram destruídas. Lenin era, como ele mesmo se descreveu certa vez em uma carta a Gorky, um “pesquisador” da filosofia, capaz de compreender os conceitos mais complexos e abstratos.

Vladimir Lenin

Questões importantes foram levantadas com o Volume 38: qual era a relação entre o estudo de Lenin sobre Hegel em 1914-15 e a conquista do poder pelos bolcheviques em 1917? Por que Lenin, nas condições de uma guerra mundial violenta, passou horas em uma biblioteca suíça em Berna debruçado sobre a Ciência da lógica de Hegel, um dos mais difíceis e abstratos textos filosóficos? Ainda outra questão levantada pelos Cadernos foi sua relação com um trabalho anterior sobre filosofia escrito por Lenin, Materialismo e empiriocriticismo. Este último havia sido tantas vezes criticado como uma repetição do materialismo “vulgar”. Significavam as notas de Lenin sobre Hegel uma reorientação fundamental em sua perspectiva teórica, de um enfadonho “materialismo mecânico” para uma mistura “dialética” de materialismo e idealismo? Lenin, sob a influência de Hegel, viu finalmente a luz e modificou substancialmente sua hostilidade anterior e implacável ao idealismo?

A direção da Socialist Labour League conhecia os Cadernos antes da publicação do Volume 38. Um artigo de 1958 na Labour Review, “Lenin como filósofo”, de Peter Fryer, citava passagens dos Cahiers philosophiques franceses. Este importante artigo citou passagens dos Cadernos (traduzidas da edição em francês pelo próprio Fryer) para refutar a visão de E. P. Thompson, que rejeitava desdenhosamente Lenin considerando-o um adepto do materialismo mecânico que tinha pouca compreensão das sutilezas do pensamento dialético. [73]

Não há dúvidas de que o conteúdo e a importância dos Cadernos filosóficos foram objeto de intensas discussões dentro da direção da SLL e, especialmente, entre Healy, Slaughter, Tom Kemp e Cyril Smith. Healy, em particular, estava ansioso para chamar atenção às questões metodológicas levantadas na luta contínua com o SWP. Recordando a intervenção de Trotsky contra o pragmatismo de James Burnham na luta de frações de 1939-40, a SLL já começava a se atentar aos cálculos pragmáticos banais e de baixo nível que determinavam as políticas do SWP. É provável que Healy tenha incentivado Slaughter a escrever um ensaio sobre o novo volume. As preocupações que motivaram a redação do ensaio foram claramente expressas em sua abertura:

Esses escritos provarão ser absolutamente inestimáveis no processo, que começa agora, de desenvolver a teoria marxista para responder às tarefas revolucionárias da classe trabalhadora neste e em todos os países. Assim como Lenin deu sua enorme e original contribuição à teoria como parte da construção de uma direção revolucionária no início do século, o desenvolvimento teórico hoje só se realizará como parte da luta viva para superar as traições e a degeneração teórica dos movimentos socialdemocrata e stalinista. Superar as consequências dessas traições não é uma questão de palavras, mas de construir uma direção alternativa capaz de armar a classe trabalhadora com a teoria em desenvolvimento, que é indispensável para a tomada de consciência de seu papel histórico e da estratégia necessária à luta de classes.

Ao ler Lenin, portanto, nosso objetivo não é encontrar receitas para nossos problemas atuais, mas compreender o método usado por este notável pensador e líder político. Aplicando este método, Lenin fez descobertas importantes sobre a natureza do capitalismo mundial e sobre as relações sociais e ideologias de seu próprio tempo, particularmente na Rússia. Essas descobertas foram mais estudadas do que o método em si, mas o uso do método dialético por Lenin foi a chave para sua capacidade de analisar novos estágios de desenvolvimento econômico e político, e para seu domínio da estratégia e tática políticas. [ênfase no original] [74]

Slaughter rechaçou as tentativas de apresentar as notas de Lenin sobre a Lógica de Hegel como uma ruptura com o Materialismo e empiriocriticismo:

Em alguns círculos, costuma-se dizer que Lenin só compreendeu a dialética quando leu Hegel em 1914-15; de fato, está na moda considerar isso como dado. Em seus primeiros escritos, Lenin é apontado como rude e mecânico; supõe-se que essa rudimentariedade tenha sido mais explícita em seu Materialismo e empiriocriticismo (1908), mas a conclusão é que suas posições em relação à organização do Partido e às questões políticas foram rígidas e dogmáticas. É importante ver que este argumento se sustenta em uma base muito estreita: em vez de um exame da obra definitiva de Lenin, incluindo Materialismo e empiriocriticismo, geralmente nos são apresentados trechos truncados da última obra, que distorcem seu significado, ou uma série de pequenas citações dos Cadernos que supostamente mostram a renúncia de Lenin a seu passado filosófico. (…)

Embora não haja dúvida de que a leitura de Hegel no início da Primeira Guerra Mundial tenha enriquecido a teoria de Lenin, permitindo-lhe penetrar mais profundamente na essência das contradições do imperialismo e do movimento operário, é totalmente equivocado fazer uma demarcação rígida, como se faz hoje com frequência, entre as fases “pré-hegeliana” e “pós-hegeliana” de sua vida política. O que há, na verdade, é um desenvolvimento realmente dialético na própria obra de Lenin. [75]

A segunda parte do ensaio de Slaughter relacionava o trabalho de Lenin sobre Hegel a questões de análise e prática políticas que haviam surgido na luta com o SWP. O líder do SWP Joseph Hansen – mais tarde exposto pelo Comitê Internacional como informante do FBI – defendeu uma atuação política baseada em uma resposta impressionista aos “fatos” de toda situação política. Isso se combinava, enfatizou Slaughter, com uma forma de “objetivismo” passivo – também frequentemente confundido com materialismo – que avalia os eventos políticos como se eles se desdobrassem totalmente fora e independentemente da ação humana em geral e da prática “crítico-revolucionária” em particular.

Objetivistas – como Lenin havia explicado já em 1894, 20 anos antes de escrever os Cadernos – falam sobre a “inevitabilidade” de um ou outro resultado político; mas, diferente do materialista marxista (dialético), eles não revelam “que formação socioeconômica exatamente dá conteúdo ao processo, qual classe exatamente determina essa necessidade.” [76] Dessa forma, como sublinhou Slaughter, essa combinação de um “culto ao fato consumado” impressionista com uma passividade objetivista reduz o partido marxista, se é que podemos considerá-lo marxista, ao papel de um impotente espectador dos acontecimentos, que foge da responsabilidade de intervir nos eventos e de fornecer uma liderança à classe trabalhadora que lute para transformar os acontecimentos – à medida que tal potencial exista objetivamente – numa direção revolucionária.

Slaughter argumentou que o trabalho de Lenin sobre Hegel fortalecia o movimento revolucionário na resistência a uma abordagem política como essa, essencialmente não marxista e revisionista:

Os Cadernos de Lenin sobre Hegel podem parecer obscuros e uma preocupação pouco urgente, quando há grandes acontecimentos em todo o mundo. No entanto, é exatamente na frente teórica que a luta mais acirrada e intransigente deve ser travada. Uma concepção errada aqui pode significar todo um método errado, tornar as relações entre os fatos totalmente incompreendidas e levar a conclusões desastrosamente erradas. Por exemplo, alguns “marxistas” assumem que o método marxista tem o mesmo ponto de partida do empirismo: isto é, ambos partem dos “fatos”. Seria difícil entender por que Lenin e outros dedicaram tanto tempo a Hegel e ao método dialético se isso fosse verdade. Claro que toda ciência é baseada em fatos. No entanto, a definição e o estabelecimento dos “fatos” são cruciais para qualquer ciência. Parte da criação de uma ciência é justamente sua delimitação e definição como um campo de estudo com suas próprias leis: os “fatos” se apresentam interconectados de uma maneira objetiva e regida por leis como parte da experiência, de tal maneira que uma ciência desses fatos é uma base útil e significativa para a prática. Nossos marxistas “empiristas” no campo da sociedade e da política estão longe desse estado de coisas. O procedimento deles consiste em dizer: tínhamos um programa baseado nos fatos tal como eram em 1848, ou 1921, ou 1938; agora os fatos são obviamente diferentes, então precisamos de um programa diferente. (…)

Uma visão falsa e não marxista dos “fatos” é o que leva a essas ideias revisionistas. O que nossos “objetivistas” estão dizendo, com sua mensagem de que “a história está do nosso lado”, é o seguinte: olhe para as grandes lutas que estão ocorrendo, junte-as sem analisá-las, siga suas impressões sobre o significado delas, e faça uma soma de tudo isso – então você terá “os fatos”. As revoluções coloniais são bem-sucedidas aqui e ali, e em outro lugar; então o sucesso da revolução colonial é um fato. Líderes nacionalistas como Nkrumah e Mboya e Nasser fazem discursos “anti-imperialistas” e até realizam nacionalizações; isso sugere que a história tende a forçar, irreversível e inexoravelmente, os políticos não proletários a uma direção socialista. Mas o “objetivismo” desse tipo é uma coleção de impressões e não uma rica análise dialética do quadro geral, com as partes relacionadas entre si. Uma análise verdadeiramente objetiva parte das relações econômicas entre as classes em escala mundial e dentro das nações. Procede-se por meio de uma análise das relações entre as necessidades dessas classes e a consciência e organização delas. Essas são as bases do seu programa para a classe trabalhadora internacionalmente e em cada seção nacional. Uma lista das “forças progressistas” não é uma análise objetiva! É o oposto, ou seja, simplesmente uma coleção de impressões superficiais, uma aceitação da consciência não científica vigente da luta de classes contemporânea tal como é mantida por seus participantes, principalmente por políticos pequeno-burgueses que dirigem os movimentos nacionais e movimentos operários burocratizados. Sobrepor esse erro teórico sugerindo que Castro e outros são marxistas “naturais” [como alegado por Hansen e o SWP] serve apenas para confirmar que os “teóricos” em questão estão pouco cientes do quão longe eles foram. Eles parecem sugerir que os períodos de máxima tensão revolucionária são aqueles em que os participantes da luta de massas chegam fácil e espontaneamente aos conceitos revolucionários. Ao contrário, é precisamente nesses momentos que são ainda mais valiosas a consciência científica, a teoria e a estratégia desenvolvidas na luta de um longo período.

A essência da história do movimento proletário revolucionário é o esforço consciente para desenvolver uma teoria científica e uma estratégia baseada nessa ciência. Tudo o que se fala sobre desenvolvimentos “naturais” em direção ao marxismo é um ataque à necessidade de prosseguir com esse processo. O empirista acredita que pode estudar as várias partes do processo social conforme elas se apresentam no dia a dia. Somando-os, então, obter-se-á um quadro total “realista” ou “objetivo” e uma perspectiva internacional. [77]

Slaughter não estava defendendo uma indiferença arrogante aos “fatos”. Mas essa acusação é frequentemente feita por pragmáticos que ignoram a metodologia, os interesses sociais e até mesmo os preconceitos políticos e intelectuais que os levam a decidir que um “fato” é importante ou não. Pouca atenção é dada, se é que há alguma, aos conceitos aplicados no processo de pensamento. É essa deficiência intelectual comum que Hegel abordou especificamente em A ciência da lógica, e que foi o foco do estudo de Lenin, como materialista, da obra monumental de Hegel. Lenin explicou o significado fundamental do pensamento teoricamente consciente (isto é, materialista dialético), do qual depende qualquer reflexão cientificamente precisa da realidade objetiva:

A lógica é a ciência da cognição. É a teoria do conhecimento. O conhecimento é a reflexão da natureza pelo homem. Porém, ela não é uma reflexão simples, imediata, nem completa, mas o processo de uma série de abstrações, a formação e desenvolvimento de conceitos, leis, etc., e esses conceitos, leis, etc. (pensamento, ciência = “A Ideia lógica”) abarcam condicionalmente, aproximadamente, o caráter universal e regido por leis da natureza em eterno movimento e desenvolvimento. Aqui existem na realidade, objetivamente, trêselementos: 1) natureza; 2) cognição humana = o cérebro humano (como o produto mais elevado desta mesma natureza), e 3) a forma de reflexão da natureza na cognição humana, e esta forma consiste precisamente em conceitos, leis, categorias, etc. O homem não pode compreender = refletir = espelhar a natureza como um todo, em sua integridade, sua “totalidade imediata”, ele só pode aproximar-se eternamente disso, criando abstrações, conceitos, leis, uma imagem científica do mundo, etc., etc. [78]

Georg Wilhelm Friedrich Hegel

Slaughter, ao mesmo tempo que explicava o imenso significado da elaboração da lógica dialética feita por Hegel, teve muito cuidado em enfatizar os fundamentos idealistas da obra e, portanto, suas limitações. Além disso, ele advertiu: “Assumir que ‘o método dialético’ é um atalho que dispensa todo esse trabalho árduo [de análise econômica, social e política] é o erro de quem fala levianamente em ‘aplicar’ a dialética.” [79]

A apropriação efetiva e cientificamente legítima dos avanços de Hegel na elaboração da lógica dialética só foi possível por meio da virada ao materialismo, o que exigiu de Marx uma crítica não apenas filosófica. Como explicou Slaughter:

Lenin não podia se basear apenas na rejeição filosófica de Hegel pelo jovem Marx, mas, de forma mais sólida, no estudo econômico e social científico realizado por Marx na realização dessa virada ao materialismo. O “mundo objetivo criado pelo homem” equivalia a uma série definida de formações socioeconômicas historicamente específicas baseadas em relações de produção definidas. Essas “estruturas econômicas”, as relações necessárias nas quais os homens se organizaram para a exploração das forças produtivas, habilidades e técnicas construídas por toda a experiência humana, foram os fundamentos objetivos de toda a atividade do homem e, portanto, de qualquer teoria científica dessa atividade. Com o fim da filosofia especulativa, a tarefa das ciências sociais ou do materialismo histórico era registrar as conexões e contradições necessárias na vida social, começando com “o modo de produção na vida material”. Tornar a classe trabalhadora consciente dessas contradições para organizar melhor sua luta contra o capitalismo – esta foi a obra da vida de Marx, dedicada em grande parte à análise científica da sociedade capitalista e suas contradições. Os marxistas hoje têm a responsabilidade e a oportunidade de produzir um relato ainda mais enriquecido das relações entre o declínio da sociedade capitalista, a luta do proletariado e a consciência ou teoria do proletariado, em seu ponto mais desenvolvido no partido revolucionário. As maiores contribuições neste sentido foram feitas por Lenin de 1896 até sua morte, e por Trotsky em sua luta para impedir a degeneração stalinista do movimento comunista internacional e depois em construir uma Quarta Internacional no período da violenta desintegração do imperialismo entre 1922 e 1940. [80]

É impossível exagerar o tamanho do impacto que o ensaio de Slaughter teve nos quadros do Comitê Internacional, particularmente nas forças conquistadas para o CIQI após a divisão com o SWP. Aqui, sou obrigado a fazer referência à importância deste ensaio em minha própria formação teórica e desenvolvimento político. À medida que o movimento do Workers Revolutionary Party em direção ao oportunismo pablista no final dos anos 1970 e início dos anos 1980 tornava-se cada vez mais evidente, a questão da relação entre esse desenvolvimento retrógrado e o retrocesso de Healy a uma interpretação errônea pseudo-hegeliana dos Cadernos de Lenin adquiria grande importância. Minhas dúvidas crescentes sobre a validade da abordagem de Healy – na verdade, a convicção de que suas palestras e artigos sobre o Volume 38 estavam errados e deveriam ser submetidos a uma crítica abrangente – foram grandemente influenciadas por minha releitura de Lenin sobre a dialética no outono de 1982. Copiei longos trechos do trabalho de Slaughter, aos quais acrescentei, para fins de autoesclarecimento, meus próprios comentários.

Em uma avaliação da abordagem de Slaughter para o estudo dos Cadernos de Lenin, escrevi:

Slaughter, ainda que enfatize corretamente a grande importância do estudo de Lenin da Lógica de Hegel, não faz nenhuma concessão ao idealismo de Hegel, isto é, ele não faz nenhuma tentativa de diluir a distinção fundamental entre o Lenin materialista e o Hegel idealista. Lenin, partidário do materialismo, apropriou-se de tudo o que havia de racional na Lógica de Hegel para enriquecer a dialética materialista. Assim, Slaughter observa apropriadamente as observações críticas de Lenin, ou seja, aquelas dirigidas contra o idealismo de Hegel:

“O místico-idealista-espiritualista Hegel (como toda filosofia clerical-idealista oficial de nossos dias) exalta e expia o misticismo, o idealismo na história da filosofia, enquanto ignora e despreza o materialismo.”

Uma característica da abordagem de Slaughter, distinta daquela de GH [Gerry Healy], é sua demonstração de que todo o trabalho de Lenin foi imbuído do método dialético. Consequentemente, o estudo de Lenin da questão da lógica foi direcionado para o aprofundamento da compreensão de como a lógica da matéria se refletia dialeticamente no pensamento. Dialética == como o movimento no mundo externo, em todos os fenômenos, se expressa por meio de conceitos. (…)

Slaughter reconhece que o estudo científico é a condição sine qua non do método materialista dialético. Isso está inteiramente de acordo com o espírito de Marx e Engels. As categorias filosóficas não podem deslocar este estudo, pois não podem fornecer um conteúdo de seu próprio automovimento. O desenvolvimento consciente do método dialético é obra da ciência, que se preocupa em descobrir as leis do movimento de todos os fenômenos e sua interconexão universal. Slaughter também relaciona isso ao desenvolvimento da ciência da política revolucionária, estabelecendo a continuidade do trabalho de Lenin, especificamente na luta de Trotsky contra a degeneração stalinista da URSS. Este elemento crucial não recebe praticamente nenhuma menção nos artigos de GH [Gerry Healy]; e, quando mencionado, é meramente com o propósito de apresentar sua versão resumida da dialética hegeliana, em vez de analisar o verdadeiro desenvolvimento da dialética materialista de Trotsky. Quanto à primeira questão, ou seja, a necessidade de um estudo científico real, GH sugere que a reprodução abstrata de categorias o torna desnecessário, já que o automovimento do pensamento está duplicando as categorias através das quais se move o pensamento “correto” (como sustenta Ilyenkov). Daí a possibilidade de uma prática “ligeira” que flui inevitavelmente da dialética dos conceitos abstratos. O resultado desse método é inevitavelmente uma aceitação acrítica das impressões que são erroneamente interpretadas como o fluxo dialético de conceitos. Assim, não se pode deixar de se congratular por ter o pensamento “certo” na sequência correta. A premissa de todo esse procedimento é a simples identidade entre matéria e pensamento. Em vez da dialética do pensamento refletindo (por meio de um processo complexo e de aproximação) a dialética das coisas, a dialética mental é considerada o mesmo que a dialética material (ou mais precisamente: a matéria dialética e seu reflexo no pensamento são concebidos como um único e indiferenciado processo). [81]

Em uma avaliação geral da importância de Lenin sobre a dialética, concluí:

O trabalho de Slaughter, publicado originalmente em 1962, foi uma importante contribuição para a luta pelo materialismo dialético dentro do movimento trotskista e permanece, até hoje, talvez a melhor exposição das características gerais do método dialético. Não há qualquer tentativa de obscurecer o papel da dialética recorrendo a uma linguagem pretensiosa e mística. Os pontos centrais são claros: o homem pensa com a ajuda de conceitos, mas esses conceitos não são fixos, eles refletem a realidade em constante mudança. O desenvolvimento de nossos conceitos revolucionários é um reflexo das mudanças no mundo material, cuja essência é introduzida pelo Partido no curso de sua luta para preparar e dirigir a revolução socialista. Em cada estágio de sua atividade revolucionária dentro de um mundo capitalista que está em constante mudança, o partido marxista busca descobrir as leis internas da crise mundial. O movimento dialético deve ser extraído do próprio mundo e expresso em conceitos que só são alcançados como resultado de um longo trabalho científico.

O livro ainda merece um estudo cuidadoso por parte dos camaradas. [82]

Mesmo depois de 39 anos, mantenho essa recomendação.

A SLL denuncia a traição do SWP ao trotskismo

O estudo de Slaughter sobre os Cadernos filosóficos de Lenin fortaleceu a luta da SLL contra o revisionismo. Em 21 de julho de 1962, o Comitê Nacional da SLL emitiu uma declaração, “Trotskismo traído: o SWP aceita o método político do revisionismo pablista”, cujo autor principal era Slaughter. Não restava dúvidas de que a SLL não aceitaria a reunificação sem um esclarecimento das causas do racha de 1953 e suas consequências. Ela rejeitou a alegação de que os supostos sucessos do regime de Castro, que chegou ao poder sem um movimento independente da classe trabalhadora, eram motivo para uma reunificação com os pablistas. O ponto de partida para a elaboração da estratégia da Quarta Internacional não poderia ser Cuba. A ênfase do SWP em Cuba, insistia o documento, estava errada. “Devemos começar”, escreveu Slaughter, “pela necessidade de estabelecer partidos leninistas em todos os países, e, em primeiro lugar, derrotar o revisionismo.” [83]

A doutrina pablista da capitulação política era incompatível com a construção de seções da Quarta Internacional:

A capitulação aos centristas ou às “correntes de esquerda” neste estágio equivale a uma traição em uma escala maior do que a de 1953. Desculpas para as direções não marxistas, afirmações de que a direção pequeno-burguesa pode se tornar marxista “naturalmente” por meio da potência das “forças objetivas” – isso ameaça desarmar a classe trabalhadora desorientando a direção marxista. Se a capitulação aos centristas acontecer agora, impedindo a classe trabalhadora de romper com as burocracias socialdemocrata, stalinista e sindical, então os revisionistas terão a responsabilidade por enormes derrotas da classe trabalhadora. [84]

Os trotskistas britânicos lançaram uma advertência: “A Socialist Labour League não está disposta a ir a qualquer parte com esse revisionismo e lutará até o fim”. [85] Este aviso foi reforçado por um editorial na Labour Review:

A esta altura, outros, que se orgulham de ser trotskistas ortodoxos, estão buscando meios e maneiras de se unir a Pablo. Os papagaios gritam: “Esqueça o passado! Não vamos discutir as razões políticas do rompimento de 1953 com o pablismo.” (…)

Este novo grupo de revisionistas nos faria escrever a história nesta linha. Em 1953 tivemos um rompimento profundo com Pablo, agora tudo isso está esquecido, foi, na verdade, um pesadelo; nunca aconteceu. Esqueça o passado, olhe apenas para a “nova realidade”. Este vergonhoso abandono da teoria trotskista constitui a nova ponta de lança do revisionismo contra o movimento marxista. (…)

Uma coisa é certa com base nessa discussão; ela mostrará que não pode haver unidade entre os marxistas e os revisionistas. A Socialist Labour League não participará em nenhuma circunstância de tal fraude política. Estamos prontos para discutir e colaborar com todos aqueles que se reivindicam trotskistas e que desejam conversar e colaborar conosco. Mas nunca aceitaremos uma unificação sobre uma base organizativa sem um esclarecimento político adequado. [86]

Oportunismo e empirismo e o racha no Comitê Internacional

Joseph Hansen, o principal dirigente político do SWP e arquiteto dos planos de reunificação com o Secretariado Internacional pablista, respondeu em novembro de 1962 a Lenin sobre a dialética com um ataque violento à Socialist Labour League e a Cliff Slaughter. O documento de Hansen, intitulado “Cuba – o teste ácido: uma resposta aos sectários da ultraesquerda”, tinha o odor fétido de uma diatribe stalinista. E, de fato, era isso: informações descobertas na década de 1970 pelo Comitê Internacional no curso de sua investigação sobre o assassinato de Trotsky concluíram que Hansen havia entrado inicialmente no SWP como um agente da polícia secreta soviética, a GPU. Hansen, cujo estilo retórico consistia em combinar uma forma maligna de sarcasmo com distorções e falsificação total, explorou a indiferença à teoria e a ignorância política da afluência cada vez maior de estudantes de classe média do SWP. Ele tratou a atenção da SLL à teoria como um assunto para brincadeira ou como expressão de um transtorno mental. A recusa da SLL a aceitar que fora estabelecido um Estado operário em Cuba devia-se a um preconceito bizarro contra os “fatos”. Em tom de zombaria, Hansen escreveu:

Os líderes da SLL se recusaram a ouvir os trotskistas americanos e canadenses que acompanharam os acontecimentos em Cuba com atenção desde o início [como se a SLL não tivesse ouvido!]. Eles se recusaram a ouvir os trotskistas latino-americanos que têm conhecimento de primeira mão sobre o desenvolvimento e os resultados da Revolução, tanto em sua base de origem quanto no resto do continente. Eles desprezam as conclusões a que chegaram outros trotskistas em todo o mundo. Por que essa recusa obstinada em admitir eventos palpáveis? O mais estranho é que os líderes da SLL admitiram que se recusam a reconhecer os fatos; eles converteram essa recusa em uma virtude e até mesmo elevaram-na a uma filosofia. O raciocínio é muito simples: reconhecer os fatos é característico do empirismo; o marxismo se opõe ao empirismo; portanto, como marxistas, nos recusamos a reconhecer os fatos. [87]

Joseph Hansen

Se outros “trotskistas” consideravam Cuba um “Estado operário” ou não, isso não resolvia de forma alguma, sem um exame cuidadoso de seus argumentos, a questão da natureza de classe do Estado cubano. Na época de Trotsky, milhões de pessoas consideravam Stalin como o herdeiro político de Lenin, consideravam a União Soviética um paraíso dos trabalhadores e os réus do Julgamento de Moscou como culpados. Isso não impediu Trotsky de denunciar Stalin como contrarrevolucionário, definir a União Soviética como um Estado operário degenerado e apelar a uma revolução política para derrubar o regime burocrático. Além disso, apresentar o silogismo absurdo construído por Hansen (“reconhecer os fatos é característico do empirismo; o marxismo se opõe ao empirismo; portanto, como marxistas, nos recusamos a reconhecer os fatos”) como uma demonstração exata do argumento da SLL foi uma provocação política.

Hansen passou a ridicularizar a passagem de Lenin sobre a dialética que já citamos extensamente (que começa: “Os Cadernos de Lenin sobre Hegel podem parecer obscuros e uma preocupação pouco urgente, quando há grandes acontecimentos em todo o mundo”). Zombando da “linguagem acadêmica original que se provou tão fascinante para os leitores deste artigo”, Hansen continuou:

O estudo desta passagem brilhante vale o esforço, pois revela o método teórico usado pelos líderes da SLL na abordagem da Revolução Cubana e de muito mais do mundo de hoje. Observamos a frase qualificativa: “Claro, toda ciência é baseada em fatos”. O autor está de parabéns por admitir isso; é uma indicação favorável de pelo menos certa consciência de que um mundo material existe. Podemos até atribuir-lhe uma medalha pela observação sábia de que as várias ciências cobrem campos diferentes, que nesses campos os fatos têm várias ordens de importância e que é função da ciência revelar seu significado e o significado das relações entre eles, para que possamos aplicá-los. (…)

O erro de Slaughter é estabelecer um abismo absoluto entre o empirismo e o marxismo, deixando de fora o que eles têm em comum. Em suma, ele é culpado de um pensamento rígido e mecânico nesse ponto. No entanto, pedimos que o culpado seja solto com uma sentença leve, tendo em vista as novas circunstâncias. Quantas vezes temos o privilégio de ver um metafísico britânico demonstrar que a maquinaria pesada do aprendizado acadêmico pode ser tão bem controlada a ponto de se provar uma ninharia como se os fatos não contassem? E com os Cadernos Filosóficos de Lenin como informação para alimentar a máquina! É melhor do que quebrar uma noz com um bate-estacas.

Esta resposta só poderia ter sido escrita por um indivíduo que não tinha nenhuma conexão intelectual com os fundamentos filosóficos do marxismo. A afirmação de que o marxismo e o empirismo compartilham um fundamento comum em sua aceitação mútua dos “fatos” – e de que o empirismo “executado sistematicamente” [88] é o método do marxismo – encobria simplesmente a divisão fundamental entre idealismo e materialismo. Os idealistas, é claro, reconhecem os “fatos”. Mas o que eles não reconhecem é que “fatos” são abstrações de uma realidade que existe independente da consciência humana. É justamente nessa questão que Lenin concentrou seu ataque a Mach no Materialismo e empiriocriticismo.

Hansen afirmou que a recusa a definir Cuba como um Estado operário equivalia a se opor à defesa de Cuba contra o imperialismo americano. Nos anos seguintes, essa mentira ultrajante tornou-se uma arma básica no arsenal de acusações pablistas contra a SLL e o Comitê Internacional.

A resposta da SLL a Hansen foi apresentada em uma declaração emitida por seu Comitê Nacional em 23 de março de 1963. Embora certamente tenha havido contribuições de Mike Banda, o autor principal foi Cliff Slaughter. Ele começou rejeitando a referência de Hansen ao “materialismo consistente” como “absurdo puro”. Slaughter escreveu:

O empirismo, e seu irmão transatlântico mais novo, o pragmatismo, recusam-se a admitir a possibilidade de responder à pergunta: “qual é a natureza do mundo objetivamente existente?” Eles deixam assim o caminho aberto para o idealismo subjetivo que explica o mundo apenas nos termos da mente. O empirismo, ignorando a história da filosofia, rejeita a teoria dialética do conhecimento como “metafísica”. Apenas a visão materialista dialética pode explicar o mundo, porque inclui uma explicação materialista do desenvolvimento de nossos conceitos, bem como do mundo material que eles refletem. O empirismo deve ser rejeitado, não tornado “consistente”. Há muitas facetas neste erro metodológico de Hansen. [ênfase no original] [89]

O tratamento rude de Hansen com questões críticas da filosofia e do método marxista recordou as preocupações levantadas por Trotsky durante a luta de frações de 1939-40 sobre o baixo nível teórico do Socialist Workers Party. Slaughter lembrou que Trotsky “em seus últimos escritos advertiu o SWP para que encorajasse uma luta determinada na frente teórica contra a filosofia ‘americana’ do pragmatismo, um desenvolvimento mais recente do empirismo; se isso não fosse feito, não haveria um verdadeiro desenvolvimento marxista nos Estados Unidos. Hoje, Hansen e Cannon estão ‘confirmando’ o aviso de Trotsky de forma negativa.” [90]

Como exemplo dessa confirmação, Slaughter revisou a resposta de Cannon à recente “crise dos mísseis cubanos”, que em outubro de 1962 havia levado os Estados Unidos e a União Soviética à beira de uma guerra nuclear. Ao descobrir, como resultado de voos de vigilância com aviões espiões U-2 de grande altitude, que a União Soviética havia instalado mísseis balísticos em Cuba, o governo Kennedy exigiu seu imediato desmantelamento e retirada do país. O presidente John F. Kennedy ordenou o bloqueio de Cuba e declarou que todos os cargueiros soviéticos que se aproximassem da ilha seriam detidos, abordados e inspecionados pelas forças navais americanas. Qualquer navio soviético que recusasse a inspeção e desafiasse o bloqueio seria alvo de tiros.

Por quase duas semanas, o mundo ficou à beira de um conflito militar, envolvendo o uso de armas termonucleares, entre os Estados Unidos e a União Soviética. Na décima primeira hora, Nikita Khrushchev – que, seis anos após seu discurso secreto, ainda estava no poder – anunciou que os mísseis soviéticos seriam retirados. O governo Kennedy prometeu que não invadiria Cuba. A ameaça iminente de guerra nuclear retrocedeu.

Em 31 de outubro de 1962, poucos dias após o anúncio soviético da retirada do míssil, James P. Cannon – aos 72 anos e vivendo em semi-aposentadoria em Los Angeles – enviou uma carta ao seu sucessor como secretário nacional, Farrell Dobbs. Sua avaliação da crise e de seu desfecho consistia em lugares-comuns semipacifistas banais que equivaliam a um pedido de desculpas pelas ações da União Soviética, que tinham sido um misto de aventureirismo imprudente com covardia abjeta. Depois de analisar as ações do governo Kennedy, Cannon escreveu:

Diante dessas ameaças diretas e imediatas à paz mundial e à revolução cubana, Khrushchev recuou, concordou em retirar os mísseis e desmantelar as bases sob a supervisão da ONU. Recebeu em troca a suspensão do bloqueio e garantias públicas de que Cuba não seria invadida.

O que mais poderia ter sido feito nas circunstâncias dadas? Teria sido imprudente arriscar-se a deflagrar uma guerra termonuclear e desafiar os Estados Unidos a vir e exterminar as bases cubanas diante da evidente determinação de Washington de ir ao limite, se necessário.

Em nossa opinião, Khrushchev recuou sensatamente de tal confronto, salvando assim o mundo da guerra e a revolução cubana do ataque de forças avassaladoras por algum tempo. Mas o tempo é de importância decisiva!

A retirada foi inevitável e as concessões, como sabemos, não renunciaram a nada essencial. Aqueles que julgam o contrário devem nos dizer que curso alternativo Khrushchev deveria ter seguido nas frentes militar e diplomática naquele terrível ponto de decisão. Khrushchev deveria ter desafiado o embargo ou se recusado abertamente a retirar as bases de mísseis? (…)

A triste realidade é que tanto a União Soviética quanto Cuba não tinham apenas pistolas, mas armamentos ainda mais temíveis, posicionados sobre suas cabeças e prontos para serem usadas. Por essa razão, não acreditamos que a atitude de Khrushchev tenha sido incorreta no nível dos assuntos militares e das relações com o Estado. (…)

Apesar das contentes afirmações da imprensa americana de que a posição forte de Kennedy deu uma lição severa e um duro revés à “agressão soviética”, as pessoas que não se viram afetadas pela propaganda imperialista, acredito, respiraram aliviadas pelo acordo e agradeceram a Khrushchev por sua sanidade. Bertrand Russell e Nehru se expressaram nessa linha. [91]

Slaughter submeteu a carta de Cannon a uma crítica mordaz, escrevendo que poderia servir “como um modelo do método pragmático. Depois de uma vida inteira de luta pelo marxismo revolucionário, particularmente contra o stalinismo, ele nega toda essa carreira em duas páginas com o tipo de política que o patético ensaio de Hansen sobre ‘teoria’ procura legitimar: ‘o que mais ele [Khrushchev] poderia ter feito sob as circunstâncias dadas?’, pergunta Cannon.” [92]

Depois de analisar as “circunstâncias” apresentadas por Cannon, conforme citado acima, Slaughter respondeu:

Cannon substitui a análise de classe das forças sociais e tendências políticas por receitas pragmáticas. As chamadas “circunstâncias dadas” (equivalentes aos “fatos” de Hansen) são o produto de uma política de colaboração de classes de Khrushchev e da burocracia stalinista, em relação ao imperialismo norte-americano. Devemos avaliar Khrushchev e a burocracia stalinista em relação ao imperialismo dos EUA. Devemos avaliar a conduta de Khrushchev como parte do processo que produziu essas circunstâncias. Somente dessa forma os marxistas podem elaborar seu programa político em relação a outras tendências de classe. [ênfase no original] [93]

Slaughter forneceu uma explicação sucinta da relação entre o método pragmático de Hansen e do SWP e sua virada acelerada ao oportunismo:

Na verdade, a carta de Cannon sobre Cuba ilustra o papel de classe do empirismo e do pragmatismo, aquelas tendências na filosofia que aceitam “o fato dado”, etc. Inevitavelmente, essa aceitação se torna o que Trotsky certa vez chamou de “culto ao fato consumado”. Com efeito, isso significa aceitar as formas de consciência próprias daqueles que se adaptam à estrutura vigente, como a burocracia na URSS e no movimento operário. Eles desenvolvem suas ideias como formas de racionalizar e justificar sua própria posição entre o capitalismo e a classe trabalhadora. A justificativa de Cannon para Khrushchev, assim como as recentes contribuições de Murry Weiss na legitimação da burocracia stalinista, e a constante evasão dos porta-vozes do SWP e dos pablistas no que diz respeito à revolução política e à construção de partidos revolucionários nos Estados operários, são um abandono da política revolucionária principista, decorrente do abandono do materialismo dialético em favor do empirismo. A análise dialética insiste em ver os fatos no contexto de toda uma série de processos inter-relacionados, não como entidades acabadas e independentes sobre as quais decisões “práticas” devem ser tomadas. No âmbito da política, isso significa ver cada situação em termos de desenvolvimento da luta de classes internacional, avaliar as políticas das várias forças políticas em relação a esta situação em termos de sua relação com essas forças de classe e com todo o seu curso anterior. É por isso que é um absurdo colocar o problema cubano como Cannon o coloca – “O que mais ele poderia ter feito nas circunstâncias dadas?” Levado à sua conclusão lógica, esse tipo de argumento pode ser usado para justificar qualquer coisa. Não surpreende, uma vez que se compreenda a dimensão desse afastamento teórico do marxismo, que Cannon profere um absurdo como “...as pessoas que não se viram afetadas pela propaganda imperialista, acredito, respiraram aliviadas pelo acordo e agradeceram a Khrushchev por sua sanidade. Bertrand Russell e Nehru se expressaram nessa linha.” Quem diria que, naquele momento, Nehru era o chefe de um governo envolvido em um conflito armado, com apoio imperialista, contra a República [Popular] da China? No decorrer desse conflito, foram realizadas prisões em massa de comunistas indianos. Ao mesmo tempo, aviões de combate soviéticos eram fornecidos ao governo indiano por Khrushchev! Sem dúvida, Nehru elogiou Khrushchev (assim como Kennedy e [o primeiro-ministro britânico Harold] Macmillan) por esse pedaço de “sabedoria” prática. Talvez Cannon diga “O que mais ele poderia ter feito nas circunstâncias dadas?” O método de Cannon leva a esse fim não por um truque de desenvolvimento lógico, mas porque as forças das quais ele se torna o apologista estão ligadas na realidade ao imperialismo e suas necessidades presentes. O trotskismo não é imune às leis da história mais do que qualquer outro estágio no desenvolvimento do marxismo e do movimento operário. Uma vez que não o desenvolvimento teórico paralisa, então o movimento está sujeito às ideologias dominantes da época, por mais gradual e sutil que seja o processo de adaptação – e por mais venerável que seja o “quadro”. [ênfase no original] [94]

Esta foi uma crítica aniquiladora que efetivamente expôs a relação entre método pragmático e política oportunista. No entanto, há uma frase nesta longa citação que levanta uma preocupação retrospectiva à luz da distorção dialética do Workers Revolutionary Party uma década mais tarde. Slaughter fala do “abandono da política revolucionária baseada em princípios que decorre do abandono do materialismo dialético em favor do empirismo” [ênfase adicionada]. Posteriormente no documento, Slaughter volta a escrever sobre “o apoio aos servos do imperialismo, que decorre do abandono do método dialético” [grifo nosso]. [95]

O giro do SWP para o reagrupamento em 1957 e, quase simultaneamente, para a reunificação com os pablistas, não simplesmente “decorre de” um método falso. A resposta mais essencial ao abandono do trotskismo pelo SWP deve ser encontrada nas condições sociais e políticas objetivas e nas pressões de classe às quais o partido estava se adaptando, das quais o recurso ao pragmatismo era uma manifestação. No entanto, a revisão do marxismo pelo WRP está no futuro. Em 1963, a ênfase em um método falso e suas consequências na política do SWP era inteiramente legítima. A concentração da SLL no método não foi empregada naquele momento, como seria em um período posterior, para evitar um exame cuidadoso das questões políticas.

Além disso, Slaughter relacionou explicitamente a falsa metodologia e o crescimento de tendências oportunistas a pressões de classe muito reais:

Em nossa opinião, as revisões do trotskismo por Pablo, levando ao rompimento em 1953, e agora manifestadas em políticas oportunistas para os países avançados, Estados operários e países coloniais, foram uma capitulação política às forças que se interpõem entre a classe trabalhadora e a derrubada do imperialismo. O poder da burocracia soviética e a lentidão dos movimentos trabalhistas europeus e norte-americanos para resolver a crise de direção nas décadas de 1930 e 1940 tiveram um impacto nas ideias de Pablo e seu grupo, que não foi interpretado cientificamente, de forma classista, mas de forma impressionista. Esse abandono do método dialético, do critério de classe na análise da política e da sociedade, resultou na conclusão de que a próxima etapa histórica da luta contra o capitalismo seria conduzida por outras forças que não as do proletariado organizado sob a condução dos partidos marxistas revolucionários. [96]

O SWP foi incapaz de responder de maneira principista aos argumentos da SLL. Sua reunificação com o Secretariado Internacional pablista, renomeado como Secretariado Unificado, foi consumada em junho de 1963.

Em julho de 1963, as seções britânica e francesa do Comitê Internacional se reuniram para avaliar as causas políticas e as implicações futuras do racha. Essa avaliação, publicada na Labour Review no verão de 1963 como um Manifesto, foi intitulada “25 anos depois”, estabelecendo assim o vínculo histórico entre a luta contra o pablismo e a fundação da Quarta Internacional em 1938. O Manifesto começava com um panorama geral da situação mundial:

Um quarto de século se passou. Foi um período de mudanças sem precedentes. Antigos impérios ruíram. Novos Estados surgiram.

O imperialismo, enfraquecido pela guerra, teve que fazer um recuo estratégico, entregando antigos territórios a novos retentores como Nehru, Nkrumah e Ben Bella. O movimento de libertação nacional se expandiu para a África e América Latina.

Fracos, céticos e impressionistas que tentaram revisar o Programa de Transição insistem que houve mudanças fundamentais no imperialismo e no stalinismo desde 1938.

Alguns abandonaram a construção da Quarta Internacional no final da guerra, declarando que a devastação da guerra, o colapso da produção, a fome e as condições caóticas na Europa significavam que a classe trabalhadora havia sido desclassificada, a luta adiada por séculos e a revolução socialista postergada.

O revisionismo assumiu, então, uma nova roupagem quando, através da traição do stalinismo e da socialdemocracia, o imperialismo pôde reconstruir suas bases na Europa.

Uma tendência, liderada por Pablo e desenvolvida na Quarta Internacional, colocou um ponto de interrogação sobre o movimento e seu Programa de Transição. Concluiu que as condições revolucionárias tornariam revolucionárias as direções, independentemente de suas origens e desenvolvimentos anteriores.

Afirmava que a burocracia stalinista não podia mais trair da mesma forma que antes da guerra.

Contra os revisionistas, o Comitê Internacional foi estabelecido em 1953 para construir uma Quarta Internacional nas melhores tradições da Primeira e da Terceira Internacionais e permanecer com o Programa de Transição.

Declaramos inequivocamente que apenas um partido mundial de marxistas – a Quarta Internacional, fundada por Trotsky – pode levar os oprimidos à derrubada do imperialismo decadente. Seu programa é baseado nas experiências históricas e internacionais dos oprimidos na sua luta pela libertação.

Nenhuma outra direção pode oferecer uma saída para a humanidade. [97]

O Manifesto destacou a centralidade da luta contra as revisões do programa revolucionário:

Desde o seu início, o movimento marxista teve que travar uma luta de vida ou morte contra as tendências revisionistas. Em uma época anterior, o revisionismo representou a pressão da pequena burguesia da cidade e do campo diretamente sobre o movimento operário.

Hoje, entretanto, essa pressão está concentrada na burocracia operária, que está integrada em vários graus com a máquina do Estado capitalista e a superestrutura do imperialismo mundial.

Os revisionistas hoje são todos aqueles que sucumbem à pressão do capitalismo, adaptando a teoria e a prática do movimento marxista às direções burocráticas existentes.

O que caracteriza todos os tipos de revisionismo hoje é a negação ou subestimação do papel da classe trabalhadora internacional como a única força social independente e revolucionária capaz de libertar a humanidade. Para essas pessoas, a classe trabalhadora deixou de ser o sujeito histórico e se tornou seu objeto desprezado e passivo.

Portanto, o movimento marxista hoje não pode ignorar nem por um único momento as ideias e tendências revisionistas. Não apenas a libertação da classe trabalhadora, mas sua própria existência como uma força independente só será garantida na medida em que se travar uma guerra implacável contra o revisionismo.

É por isso que o Comitê Internacional se recusou a participar da recente conferência de “unidade” convocada pelos revisionistas pablistas na Itália.

Há dez anos se desenvolve uma luta ininterrupta contra o revisionismo pablista. Algumas pessoas na Europa e na América que nos apoiaram anteriormente mudaram suas ideias sobre Pablo e o pablismo no decorrer da última década.

Nós não mudamos. O pablismo representa para nós uma forma avançada de degeneração centrista em uma seção do movimento trotskista. [98]

Com notável previsão, o Manifesto condenou o Partido Lanka Sama Samaja como o exemplo traidor do tipo de oportunismo promovido pelo pablismo:

O exemplo mais instrutivo de degeneração oportunista, auxiliado, se não inspirado, por Pablo, é o Partido Samaja de Lanka no Ceilão. Em 1954, na época da cisão na Quarta Internacional, os líderes deste partido tomaram uma posição equivocada.

(No entanto, apenas alguns meses antes disso, uma minoria defendia um rompimento com a política pablista do LSSP. Os líderes, entretanto, recusaram-se a tirar quaisquer conclusões políticas deste rompimento)

Em troca, Pablo encorajou ativamente o oportunismo dos líderes do LSSP que hoje trocaram suas pretensões revolucionárias pela submissão mais servil aos partidos e regimes burgueses. Em 1960, cabe assinalar, o LSSP estava preparado para formar um governo de coalizão com a Sra. Bandaranaike e o burguês Partido da Liberdade do Sri Lanka.

Esses líderes são charlatães pequeno-burgueses disfarçados de marxistas. Se alguém tiver dúvidas, leia o Programa de Transição sobre as tarefas da Internacional e compare-o com as políticas do LSSP. [99]

Exatamente um ano depois, o LSSP confirmou os alertas do CIQI ao entrar no governo de coalizão burguesa de Bandaranaike, uma traição de dimensões históricas que teria consequências devastadoras para todos os setores da classe trabalhadora do Sri Lanka.

Por fim, o Manifesto analisou os desafios e tarefas do Comitê Internacional:

O Comitê Internacional sempre defendeu a unidade da Quarta Internacional e lutou contra todas as tentativas de dividir o movimento e destruir seus quadros. A recente conferência na Itália deve ser vista não como “unidade”, mas como a continuidade política de uma divisão iniciada em 1953.

A verdadeira unidade da Quarta Internacional só pode ocorrer por meio da adesão a um método correto, princípios firmes e um programa experimentado e testado. Unidade que se baseia na confusão – que não se baseia na convicção de construir uma direção marxista mundial em disputa com todas as outras tendências – essa unidade é uma corda de areia.

“Esta é uma época trotskista”, dizem os revisionistas. Mas não há confiança nem otimismo nesse tipo de idiotice. Expressa a atitude daqueles que adaptaram com êxito suas políticas às necessidades dos nacionalistas pequeno-burgueses e dos reformistas de esquerda.

A internacional de Pablo não tem futuro porque se baseia na pequena burguesia – um grupo social sem futuro histórico. Estamos otimistas com a Internacional porque nos baseamos na classe trabalhadora e na luta de classes que se desenvolve em todo o mundo.

Dizemos que esta é uma época trotskista não porque algum processo irreversível a torne assim, mas porque a partir de uma intervenção firme, baseada em princípios e independente nas lutas da classe trabalhadora, construiremos um partido mundial.

A luta pela construção da Quarta Internacional é inseparável da luta contra o revisionismo. “A Quarta Internacional varre para fora os impostores, charlatães e os não-requisitados professores da moral.”

Apelamos a todos aqueles que querem construir uma verdadeira direção comunista da classe trabalhadora: apelamos a todos aqueles que lutam pelo Programa de Transição: a todos aqueles que aceitam a proposta fundamental da Conferência de Fundação, que a crise da direção só pode ser resolvida por meio da atuação consciente da Quarta Internacional. [100]

A reunificação sem princípios do SWP com o Secretariado Internacional marcou uma escalada da guerra civil dentro da Quarta Internacional, que eclodira dez anos antes. A luta travada pela direção da SLL foi de importância histórica mundial, pois evitou a destruição do Partido Mundial da Revolução Socialista, fundado por Trotsky 25 anos antes. Além disso, as lições políticas dessa luta, registradas nos documentos extraordinários escritos entre 1961 e 1963, viriam a desempenhar um papel crucial no desenvolvimento subsequente das novas seções do Comitê Internacional que foram construídas com base nos princípios defendidos pela direção da SLL. A imensa contribuição feita por Gerry Healy, Michael Banda e Cliff Slaughter é um elemento duradouro de seu legado que nenhuma análise honesta sobre seu papel histórico pode desconsiderar.

O papel de Cliff Slaughter na década que se seguiu à ruptura de 1963 no Comitê Internacional será o assunto da segunda parte desta biografia política, que aparecerá no final do próximo outono.

Notas:

[73] Labour Review, Setembro-Outubro de 1957, Vol. 2, nº 5, pp. 136–147.

[74] Labour Review, Volume 7, nº 1, Primavera de 1962, p. 33.

[75] Ibid., pp. 35-36.

[76] “The Economic Content of Narodism and the Criticism of It in Mr. Struve’s Book”, Lenin, Collected Works, Vol. 1 (Moscow: Progress Publishers, 1960), pp. 399–400.

[77] “‘The Theoretical Front’, Lenin’s Philosophical Notebooks, Second Article” Labour Review, Verão de 1962, Vol. 7, No. 2, pp. 77–78.

[78] Lenin, Collected Works, Volume 38 (Moscow: Foreign Languages Publishing House, 1961), p. 182.

[79] “‘The Theoretical Front’, Lenin’s Philosophical Notebooks, Second Article” Labour Review, Summer 1962, Vol. 7, nº 2, p. 78.

[80] Ibid., pp. 76–77.

[81] David North, Notes on Lenin on Dialectics, 1º de outubro de 1982 [manuscrito datilografado não publicado].

[82] Ibid.

[83] “Trotskyism Betrayed: The SWP accepts the political method of Pabloite revisionism”, Trotskyism Versus Revisionism, Vol. 3 (London: New Park, 1974), p. 238.

[84] Ibid., pp. 238–39.

[85] Ibid., p. 239.

[86] “Against Revisionism”, Labour Review, Vol. 7, nº 2, Verão de 1962, p. 41.

[87] “Cuba, the Acid Test”, Trotskyism Versus Revisionism, Vol. 4 (London: New Park, 1974), p. 23.

[88] Ibid., p. 25.

[89] Ibid., p. 76.

[90] Ibid.

[91] “Letter from James P. Cannon to Farrell Dobbs, October 31, 1962”, Trotskyism Versus Revisionism, Vol. 4, pp. 72–73.

[92] “Opportunism and Empiricism”, Trotskyism Versus Revisionism, Vol. 4, p. 77.

[93] Ibid., pp. 77–78.

[94] Ibid., pp. 78–79.

[95] Ibid., p. 87.

[96] Ibid., p. 97.

[97] “Manifesto of the International Committee of the Fourth International”, Labour Review, Verão de 1963, Vol. 7, nº 5, pp. 165–66.

[98] Ibid., p. 168.

[99] Ibid., p. 169.

[100] Ibid., pp. 170–71.

(Texto publicado originalmente em inglês em 8 de agosto de 2021)

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