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Governo do PT lança as bases de um Estado policial no Brasil

Nos últimos dois meses de 2023, o Estado brasileiro implementou uma série de medidas ameaçadoras, preparando o terreno para uma repressão maciça contra a classe trabalhadora. O governo do Partido dos Trabalhadores (PT), do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, e o Supremo Tribunal Federal (STF) implementaram uma série de novas leis e precedentes legais que aumentarão enormemente os poderes da polícia, inclusive para operações de espionagem doméstica e para processar civis em tribunais militares.

Polícia Militar acompanha manifestação em Brasília em 13 de dezembro de 2023 [Photo: Jose Cruz/Agência Brasil]

A mais proeminente das novas leis foi assinada por Lula em 13 de dezembro de 2023. É a chamada Lei Orgânica Nacional das Polícias Militares (LOPM), que renova as bases legais das 27 Polícias Militares (PMs) do país, controladas pelos 26 estados brasileiros e pelo Distrito Federal.

A lei foi proposta pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), em 2001, e levou 22 anos para finalmente ser aprovada nas duas casas do Congresso em novembro de 2023, com um impulso crucial do governo do PT. Seu objetivo declarado é regulamentar e adaptar as funções das PMs à estrutura democrático-burguesa da Constituição de 1988. A Carta foi adotada após a queda da ditadura militar de 1964-1985, apoiada pelos EUA, que havia originalmente criado as PMs em 1969 como “forças auxiliares do Exército”, fazendo delas um componente essencial de sua campanha de repressão contra trabalhadores e guerrilheiros rurais.

O decreto original que estabeleceu as PMs veio na esteira do chamado 'golpe dentro do golpe', em dezembro de 1968, quando a junta militar que governava o país assinou o infame Ato Institucional Número 5 (AI-5), fechando o Congresso, abolindo o direito ao habeas corpus e banindo todos os partidos oposicionistas, com exceção de um, com o objetivo de dar à ditadura um fino verniz democrático. Uma característica crucial das novas forças policiais a partir de 1969 foi sua designação como “forças auxiliares do Exército” – o que efetivamente deu ao último a capacidade de sobrepor-se aos governadores civis, que estão formalmente no comando das tropas – e sua organização de estilo militar, incluindo suas próprias patentes e tribunais militares.

A continuidade da existência das PMs sem nenhuma nova lei específica – apenas vetos ao decreto original de 1969 – é um componente fundamental do que ficou conhecido no Brasil como “entulho autoritário”, uma infraestrutura autoritária intocada que opera sob a cobertura da “Constituição Cidadã” de 1988. Como resultado, as PMs tornaram-se uma força letal, equipada com armas típicas de guerras e matando cerca de 6.000 brasileiros por ano. Esses assassinatos ocorrem principalmente em vinganças sangrentas, sem qualquer traço de respeito à lei, que muitas vezes vitimizam dezenas de pessoas de uma só vez nas favelas do país, realizadas sob o pretexto de combater o crime organizado. Tais massacres têm levado a repetidos apelos de organizações de direitos humanos pela dissolução completa desses órgãos armados. Somente no estado de São Paulo, a Polícia Militar tornou-se uma força gigantesca de 100.000 soldados, quase a metade do tamanho do Exército brasileiro.

O novo projeto de lei não aborda nenhuma dessas questões, mas ao contrário, sanciona a repressão, agora sob a fachada “democrática” do partido, o PT, e do líder político, o ex-presidente do sindicato dos metalúrgicos, Lula, que formalmente estiveram à frente da oposição maciça da classe trabalhadora à ditadura. Como observaram os pesquisadores Adilson Paes de Souza, da Universidade de São Paulo, e Gabriel Feltran, da Sciences Po de Paris, em um artigo contundente publicado pelo jornal Folha de S. Paulo em 5 de dezembro, a nova lei assinada por Lula não apenas mantém, de forma ligeiramente reformulada ou muitas vezes literal, as principais características autoritárias do decreto original, mas também as expande, dando às Polícias Militares autonomia para estabelecer 'operações de inteligência e contra inteligência'.

Em outras palavras, a legislação permitirá que os comandos das PMs criem órgãos de espionagem semelhantes ao infame Departamento de Ordem Política e Social (DOPS), usado para capturar, torturar e assassinar opositores da junta militar até 1985. Como observam os autores, uma vez que a nova lei mantém a disposição fundamental do decreto de 1969 que estabelece as Polícias Militares como uma 'força auxiliar do Exército', a autorização para que ela realize operações de inteligência fornece uma fonte direta de informações para o último, fora de qualquer supervisão civil e ignorando os canais oficiais da Agência Brasileira de Inteligência (Abin).

Oficiais da Polícia Militar e dos Bombeiros Militares acompanham sessão do Senado brasileiro que aprovou a nova Lei Orgânica Nacional das Polícias Militares, em Brasília em 7 de Novembro de 2023 [Photo: Lula Marques/ Agência Brasil]

Duas semanas depois, em 27 de dezembro, Lula assinou um decreto concedendo às Guardas Municipais de todo o país poderes de polícia para atender chamadas de emergência e efetuar prisões em flagrante, na prática incorporando dezenas de milhares de novos agentes às fileiras do aparato repressivo brasileiro. O decreto veio em resposta a um número crescente de casos nos tribunais de todo o país em que réus questionam as provas produzidas pelas guardas, que tinham até agora a função legal apenas de proteger a infraestrutura urbana. O decreto também prevê a integração das guardas com outros órgãos policiais, a ser estabelecida em cada cidade.

Paralelamente, o STF decidiu, em 10 de novembro, que os tribunais militares têm o direito de julgar civis se eles forem acusados de “crimes militares”. O STF estava julgando o recurso de um empresário acusado de tentar subornar um oficial em troca de autorização para operar uma empresa de vidros à prova de balas. O caso foi considerado um “crime militar” e o STF recusou-se a transferi-lo do Supremo Tribunal Militar (STM) para um tribunal comum. Agora, tal precedente provavelmente abrirá as portas para o julgamento de civis que protestam contra abusos em operações da Polícia Militar, ou até mesmo os registram, como há muito tempo era almejado pelos comandantes. Não satisfeito com a decisão, o governo tem planos de consagrar e ampliar o escopo dos crimes cometidos por civis julgados em tribunais militares por meio de emenda constitucional.

A série de novas medidas repressivas ocorre em meio a esforços do governo para aumentar os gastos militares para 2% do PIB por meio de outra emenda constitucional, e a uma contínua exaltação da indústria militar como o “motor” do desenvolvimento do país. Há também uma campanha para aprovar uma lei draconiana de censura à Internet, o projeto de lei 2630/2020. Ele é retratado como uma medida decisiva para evitar novos ataques da extrema direita à democracia burguesa – explicada em termos de “desinformação” massiva disseminada nas redes sociais. Tudo isso também ocorre em meio à repetição interminável de que o alto comando militar, que estava totalmente envolvido na conspiração liderada pelo ex-presidente Jair Bolsonaro para anular as eleições de 2022 e permanecer no poder, foi o verdadeiro salvador da democracia por “recusar-se” a segui-lo às últimas consequências, incluindo o assalto fascista à capital em 8 de janeiro de 2023.

Os eventos da última década, que culminaram com a ascensão ao poder dos herdeiros da ditadura liderados por Bolsonaro, expuseram completamente a mentira promovida pelo PT e seus apoiadores desde o fim do regime militar em 1985 de que um regime democrático poderia ser estabelecido e aperfeiçoado ao longo do tempo. O próprio conceito de “entulho autoritário”, usado recorrentemente na imprensa e no meio acadêmico, sempre carregou o pressuposto de que as leis repressivas eram resquícios da ditadura que acabariam sendo substituídas por leis democráticas e, portanto, eram relíquias irrelevantes do passado. Agora, esse trajeto está sendo revertido em um ritmo assombroso.

A aprovação de uma lei que concede poderes de espionagem às Polícias Militares expõe mais uma vez outra mentira, a de que o PT é um espectador e uma vítima, mesmo que covarde e ingênua, em todo esse processo, encurralado a adotar políticas de direita pela oposição no Congresso. Não é segredo que o governo patrocinou a aprovação rápida da LOPM, dando a sua relatoria a um de seus principais representantes no Senado, o ex-delegado da Polícia Federal Fabiano Contarato, com o objetivo de obter o apoio dos militares e da extrema direita.

O governo do PT está expandindo enormemente os poderes das organizações mais violentas do Estado brasileiro, que são um criadouro frascista alimentado pela violência diária e sádica contra os setores mais oprimidos da população. As Polícias Militares têm sido abertamente reconhecidas como um eleitorado-chave de Bolsonaro, a tal ponto que o Ministro do STF Alexandre de Moraes declarou recentemente que, em 8 de janeiro de 2023, ele foi obrigado a ordenar a prisão imediata do governador, do secretário de segurança e do comandante da polícia do Distrito Federal para evitar um “efeito dominó” de simpatia pelo golpe no resto do país.

O próprio Moraes foi empoderado pelo governo Lula e pelos principais partidos do Congresso a chefiar uma investigação sigilosa sobre a conspiração ditatorial liderada por Bolsonaro e seus aliados devido à sua proximidade com o aparato policial e militar. Moraes já havia chefiado a Polícia Militar em São Paulo, como secretário de segurança do estado, sendo posteriormente nomeado Ministro da Justiça e Segurança Pública pelo governo de Michel Temer.

A base para essas políticas reacionárias é a preocupação cada vez maior de que as medidas de austeridade implementadas pelo PT em nome do capital nacional e imperialista levarão, cedo ou tarde, a um confronto com a classe trabalhadora, e o Estado capitalista deve se preparar para isso. Em apenas um ano, o governo abandonou suas referências abstratas de campanha a reformas sociais e, em vez disso, comprometeu-se com um orçamento de déficit zero para 2024 com o objetivo único de atrair o máximo de fluxos de capital estrangeiro para o país. Longe de se traduzir em aumentos nos salários e no bem-estar social, como prometido por Lula, a garantia de “estabilidade” para os investidores estrangeiros exigirá repressão maciça contra os trabalhadores e um giro cada vez mais profundo às próprias forças repressivas que são a espinha dorsal da ameaça da extrema direita, que o PT prometeu combater.

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